Por Thiago Galdino

Mais do que revisitar a trajetória de um grupo musical, O Novo Xaxado de Mossoró é um gesto de reencontro com a memória coletiva do interior do Rio Grande do Norte. Dirigido por Jongozú (artista multidisciplinar do semiárido potiguar), o documentário celebra o legado do Trio Mossoró e reafirma o simbolismo da música nordestina tradicional como herança. Selecionado para a Mostra Competitiva Mundaréu, no 4º Muído – Festival de Cinema de Campina Grande (PB), o filme chama atenção por sua proposta estética, inclusão acessível e forte vinculação com a cultura popular local. 

O Novo Xaxado de Mossoró retrata a trajetória do Trio Mossoró. Como nasceu sua conexão com esse grupo e por que decidiu contar essa história na atualidade?

Jongozú: Enquanto artista do interior do Rio Grande do Norte, eu vejo a música do Trio Mossoró e a trajetória que eles construíram como um objeto de referência e pesquisa, em que se precisa olhar com sensibilidade e admiração. A existência do grupo, por si só, é uma quebra de paradigma para quem vem daqui. Então, nesse momento em que a cultura local se vê completamente à margem do que é valorizado, falar sobre Trio foi uma busca por preencher essa lacuna.  

Você é estreante no Muído — Festival de Cinema de Campina Grande. O que significa para você ter seu trabalho selecionado na Mostra Competitiva Mundaréu do festival?

Jongozú: É fantástico! Ver uma produção que leva meu nome na direção, mas, que foi construída a várias mãos, presente nesse evento, é motivo de muita alegria para mim. Mesmo porque é um projeto totalmente independente, com uma equipe bem enxuta, feito à base de pesquisa, leitura e também muita vontade.

Como artista que integra RAP, MPB, música afro-brasileira e design, de que modo essas vertentes culturais influenciam a estética e ritmo do documentário?

Jongozú: Que pergunta interessante! Eu costumo dizer que tudo se atravessa: o RAP, a MPB, o forró, os saberes afro-brasileiros, a comunicação visual… A MPB é o forró, e o forró é uma música afro, popular e brasileira. Assim como o RAP, que também nasce da resistência pela oralidade. Essas linguagens sempre fizeram parte de mim e, no documentário, elas aparecem na trilha, na estética, no ritmo da montagem e nos grafismos. O próprio logotipo do filme é inspirado nos letreiros populares pintados à mão (uma linguagem que também está presente na infância de Oséas Lopes, integrante do Trio Mossoró, que fazia esse tipo de trabalho). Então, tudo vive conectado.

O filme tem três versões — legendada, com audiodescrição e LIBRAS — para ampliar o acesso. De onde surgiu essa decisão e o que ela revela sobre seu compromisso com a inclusão?

Jongozú: Desde o início, a gente teve clareza de que o documentário precisava ser um filme acessível. Por ser um projeto viabilizado pela Lei Paulo Gustavo, entendemos que o recurso público deve garantir também o alcance democrático da obra. Por isso, o documentário foi lançado nessas três versões. Foi um esforço construído com o apoio da RR Comunicação e Acessibilidade, uma equipe especializada que cuidou dessa etapa com muito cuidado. A inclusão é um compromisso com o direito de todos à cultura.

O Trio Mossoró tem um papel central na cultura nordestina dos anos 50/60. Quais trechos dessa memória cultural você quis preservar e trazer à tona?

Jongozú: Em O Novo Xaxado de Mossoró, nós passeamos pela trajetória inteira do Trio buscando identificar os momentos mais marcantes para o grupo e, consequentemente, mais representativos para a cidade. Desde a ligação do Trio com Luiz Gonzaga, até a volta dele para a cidade natal quase 50 anos depois. E esse trabalho de pesquisa também foi captar a visão de pessoas que tiveram contato com o Trio Mossoró naquela época.

Cartaz de O Novo Xaxado de Mossoró – Foto: Divulgação
Lúcia Rocha, escritora mossoroense, em depoimento para O Novo Xaxado de Mossoró – Foto: Divulgação
Jongozú – Foto: Divulgação

Você adaptou a linguagem do xaxado tradicional ao formato audiovisual contemporâneo. Como foi esse exercício de reinterpretação da estética nordestina?

Jongozú: Reinterpretar a estética do xaxado no audiovisual foi uma escolha intencional, tanto poética quanto política. A gente está falando de um ritmo que carrega a memória de território, de povo. Então, no documentário, buscamos evidenciar no xaxado essa força simbólica, combinando elementos estéticos com uma pegada mais contemporânea. Isso aparece, por exemplo, na trilha sonora, que foi construída pensando na junção do forró com o hip-hop. Além do som, tem os grafismos, e até a maneira como as cores do filme são apresentadas.

O documentário foi produzido com apoio da Lei Paulo Gustavo e da Prefeitura de Mossoró. Como foi a experiência de viabilizar o projeto dentro de uma política pública?

Jongozú: A Lei Paulo Gustavo foi essencial para que o documentário acontecesse. Sem esse apoio, seria muito difícil tirar o projeto do papel, especialmente sendo um artista independente. Com o incentivo, conseguimos estruturar a produção, mesmo com uma equipe enxuta e recursos limitados. Foi um desafio, claro, mas também uma oportunidade de colocar em prática um trabalho comprometido a preservar parte da memória cultural da cidade.

Sua trajetória é marcada por múltiplas linguagens artísticas. Em que medida esse background multidisciplinar fortaleceu seu olhar enquanto realizador de documentário?

Jongozú: Estar presente em todas as etapas do projeto, de maneira colaborativa, é uma experiência que esse aprendizado multidisciplinar me proporciona, direcionando criativamente a trilha sonora, a identidade visual, o roteiro, a edição, etc.

Como você avalia o papel da Mostra Competitiva Mundaréu no Muído para obras como a sua, vindas do interior do RN? O que espera do feedback do público e da crítica?

Jongozú: Acredito que a Mostra Mundaréu tem um papel fundamental na valorização das produções nordestinas. É uma vitrine muito interessante pra obras que, muitas vezes, circulam com dificuldade por falta de espaço. Ver O Novo Xaxado de Mossoró entre filmes de todos os estados do Nordeste, sendo um dos representantes do Rio Grande do Norte, é uma honra e também uma responsabilidade. Sobre o feedback, espero que o público se conecte com a história, que reconheça ali traços de sua própria cultura, e que a crítica consiga perceber a delicadeza do que está sendo contado, mesmo em meio às limitações técnicas de uma produção independente.

Para onde vai O Novo Xaxado de Mossoró após Campina Grande? Há previsão de circulação, exibições comunitárias ou festivais nacionais/internacionais?

Jongozú: Estamos em parceria com a Tarrafa, uma distribuidora de Pernambuco que vem somando forças com a gente nessa etapa de circulação. Ela está cuidando da curadoria e das inscrições em festivais, tanto nacionais quanto internacionais. Ainda não temos datas confirmadas, mas há um planejamento em andamento. Antes mesmo da estreia em festivais, já realizamos sessões do filme em escolas públicas de Mossoró, e isso, para mim, foi tão importante quanto qualquer exibição oficial. Foi um jeito de fazer a história do Trio Mossoró circular onde ela nasceu. E a ideia é seguir nesse caminho de alcançar novas pessoas sempre!

O Novo Xaxado de Mossoró é mais do que um registro histórico: é um exercício de escuta e invenção. Ao transformar memória em linguagem viva, Jongozú mostra como o cinema pode servir de ponte entre tradição e futuro. Seja nas salas de exibição, nos festivais, ou nas escolas públicas onde o filme já circula, a obra reafirma a música nordestina tradicional como documento sonoro e o audiovisual como ferramenta de pertencimento. Para Jongozú, seguir contando essas histórias é também um modo de seguir plantando raízes (em Mossoró, no Nordeste e além).