Eu conheci Lucas Koka em 2014, na Liga do Funk, associação cultural da qual fui vice-presidente. Mas comecei colar mais com ele em 2016, ano do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, quando ocupamos a Funarte junto a outros coletivos de cultura. A pauta era impedir a extinção do Ministério da Cultura proposta pelo então presidente golpista Michel Temer. Naquela época, os secundaristas como Koka estavam no pedestal da esquerda: tinham acabado de tocar uma mobilização gigantesca contra o fechamento de escolas por todo o país e tinham ganhado. Todas as fichas estavam neles: “Vocês são a esperança”; “o futuro do país depende de vocês”; “vocês são geniais”; “Vocês têm que derrubar esse governo”. Hoje eu entendo o peso dessas frases, que ouvi um montão.

“Vocês têm que…” Naquela época, parecia que os partidos de esquerda iam se renovar pra caramba, colocar essa molecada preta de quebrada pra dentro, dar formação crítica pra todo mundo. Mas não teve muito jogo depois do pontapé inicial. O tempo foi passando e as frases de incentivo foram virando crises de ansiedade. A certeza do protagonismo político foi dando lugar à síndrome do impostor. Quando algo dava errado, a autoestima dos meninos e meninas ia lá no chão. Teve tentativas de suicídio, teve comportamento autodestrutivo. Teve morte. Teve um monte de moleque de 18 anos com crise de meia-idade por causa da expectativa destroçada. Afinal, se alguém é tão genial, se é capaz de mudar tantas coisas no mundo, por que não consegue mudar a própria vida?

Passamos a responsabilidade de mudanças necessárias de um país em queda livre para jovens que ainda estavam em formação. E não tô dizendo que jovens são imaturos e não devem assumir responsabilidades ou qualquer coisa do tipo. Mas o espaço que esses jovens tomaram era fruto de um saber empírico. Não teve formação política antes nem oferta de estrutura financeira e muito menos psicológica depois, para que esses futuros líderes construíssem maturidade de fato para defender publicamente pautas caras à esquerda: combate ao racismo estrutural, ao machismo e à lgbtqfobia, igualdade de direitos, igualdade social. Faltou ajudar não só a se posicionar no mundo, mas se defender dele também. Mas o “vocês têm que…” sobrou. E me preocupa o quanto um certo grupo tira responsabilidades das suas próprias costas enquanto joga nas de outro grupo, muito menos munido e estruturado.

O resultado foi que essa geração, que cresceu no pós-ostentação e ajudou a aleijar o PSDB, saiu pro mundo afobada pra fazer a revolução. Eu reconheci o padrão, quando vi o Koka tentar fundar Wakanda na marra dentro do BBB. Ouvi o eco daquelas frases de incentivo que o pessoal soltava lá atrás. E olha que o Lucas foi um que voou: Globo, Malhação, BBB… Uma ascensão meteórica que sempre dividiu meus sentimentos entre orgulho e medo. Afinal, você já se perguntou quais feridas carregam as pretas e pretos que ascendem? O que fomos e vimos na infância, o que nos assombra até hoje e entra em conflito com os novos espaços que ocupamos ou as novas experiências que vivemos? Quando as falhas e as dificuldades aparecem, a crítica e a exclusão vêm antes do acolhimento e cuidado.

E isso não é culpa só do indivíduo que exclui. É uma cultura destrutiva de Instagram, uma ferramenta criada pelo Facebook neoliberal pra transformar todo mundo num outdoor de si mesmo. Se todo mundo se vende o tempo todo, todo mundo compete. E compete entre nós, porque o poder real tá fora do jogo. Rede social não é lugar pra enfrentar o poder. É lugar pra se empoderar individualmente. É lugar de fala e silenciamento, não lugar de luta e construção coletiva. Cancelamento é consequência óbvia desse lugar. Porque cada um que desaparece é um competidor a menos. É até irônico ver o Big Brother, que toda semana tem um “paredão”, discutir cancelamento.

De paredão, jovens periféricos entendem. Raramente eles são incluídos nas agendas prioritárias com voz e autonomia suficientes para trazer as prioridades do debate estrutural. Nem em gabinetes, para que possam realmente aprender na prática como funciona a política institucional. Isso, enquanto filhos e apadrinhados de lideranças políticas assumem essas posições falando em “juventude” como uma massa homogênea, com pouca ou nenhuma experiência plural que justifique a ocupação desses lugares. Basta olhar pra Câmara dos Deputados, onde, enquanto todo mundo discutia o BBB na semana passada, o filho do branco fulano felicitava o filho do branco ciclano pela passagem de bastão pro filho do branco beltrano.

O Koka é filho de outra cena. É filho dessa mistura de exclusão com esperança, com incentivo exagerado, com raiva, com tudo junto, com muita energia e pouco espaço de construção real, tanto da personalidade quanto de uma perspectiva política profunda. E eu não tô falando que ele não tenha perspectiva política. Ele tem. Mas tem muito conflito desordenado também. Muita gente preta aqui fora entende isso daí. Os de sempre. Preta Ferreira disponibilizou sua assessoria pra família do Lucas; Tia Ma lembrou que pessoas pretas divergem e fez críticas ressaltando que entendia em parte a confusão que Lucas causou; Lázaro Ramos falou sobre o que parece ser uma crise de alopecia no Lucas, uma doença causada pelo estresse e angústia; e neste domingo (7), Monique Evelle lançou uma vaquinha pra garantir o prêmio de R$ 1,5 milhão pra ele. Essas vozes têm se somado a várias outras – famosas ou não – que tentam ser empáticas sem passar pano ou largar a mão dele.

Na casa, porém, essa ideia de comunidade que nos fez sobreviver até aqui, foi substituída pela lógica da competição, que é a mesma no Big Brother ou nas redes sociais. Essa lógica opera apagando as subjetividades e o que sobra é esse movimento maniqueísta em que ninguém deve ter sombras ou contradições. E num cenário como o atual, não vai sobrar muito de nós nem como indivíduos nem como comunidade.

O que o BBB21 expôs em rede nacional é um problema que tem sido timidamente mencionado nos últimos tempos, mas merece atenção: a síndrome do preto único. Com poucos espaços para pessoas negras dentro das estruturas e a crescente necessidade dessas mesmas estruturas de se validarem como antirracistas, começamos a nos degladiar para garantir esse “lugar”. Explico: a existência de uma só pessoa negra no reality como favorita ao prêmio, como aconteceu na 20ª edição, foi capaz de unir vozes de fora e forçar a colaboração da culpa branca internamente. Mas o fato de que só há um ganhador possível e muitos iguais, como desta vez, fez essa força preta coletiva da qual falamos diariamente, se perder. Uma evidente conquista do racismo estrutural, o crime perfeito desse sistema de poder chamado branquitude.

Ou seja, a edição mais preta do BBB é também a que mais explora nossas dores e fissuras como indivíduos e comunidade. Tem dado pra gente a oportunidade de pensar na nossa saúde mental e na dos nossos; no quanto também somos atravessados por preconceitos outros e por visões estreitas de mundo; e o quanto a cultura do indivíduo pode nos afastar do comum. E a conclusão que eu chego é que a questão não é quem tá certo, quem tá errado. Mas que nós, povo preto e oprimidos em geral, corremos o risco de ficarmos mais perigosos pra nós mesmos que pro sistema.

*Em tempo, deixo meu carinho a você e a sua família, Koka. Não foram dias fáceis, mas você saiu gigante! Foi um grande aprendizado pra todos nós.

Este texto contou com a colaboração de Vanessa Oliveira e Gabriel RG.