Nem feios nem bonitos: uma resposta a Nelson Motta
“Sintonia”, a série que marca a estreia de Kondzilla na ficção de longa-metragem, foi um estouro na semana passada.
“Sintonia”, a série que marca a estreia de Kondzilla na ficção de longa-metragem, foi um estouro na semana passada.
Texto do colunista Bruno Ramos em parceria com Vanessa Oliveira e Marcelo Rocha
A música mais tocada durante os seis capítulos já é um sucesso no Spotify e no Youtube. As personagens viraram figurinhas no Whatsapp e a barbearia da série, montada no centro para promover a produção Netflix, bombou.
Acelera o coração ver as quebradas de São Paulo tão bem retratadas, com drones, enquadramento classe A, atuação impecável. Dá orgulho também ver tanta cara conhecida, tanto moleque que tá por aí tentando fazer valer a pena há tanto tempo, compondo uma produção deste tamanho, lançada ao mesmo tempo em 190 países. Mas é preciso segurar a emoção para dar conta das camadas que constroem a sensível história de Rita, Doni e Nando.
Existe na série a construção de um imaginário para dentro e outro para fora da quebrada: para dentro, a produção alimenta na molecada o sonho de se tornar MC, pensando inclusive na longevidade do próprio mercado. Até porque, as outras alternativas são (ainda mais) restritivas e perigosas. A realidade é tão nua e crua que, no lugar de gerar uma reflexão, o risco para dentro é causar um sentimento de conformismo. A gente é isso aí mesmo! Aceita a roleta russa, atira no escuro na carreira artística, na vida ingrata do crime ou se tranca na igreja.
Para fora da quebrada, está a consolidação de estereótipos: o menino preto foi para o crime, o branquinho tinha chances de ganhar o mundo e ganhou; a vendedora vai se tornar pastora, a Jussara que é uma preta agressiva com contatos familiares com o crime; os bandidos são todos pretos com cara de malvados. Como próximas temporadas ainda são mera especulação, a gente – que acredita que ninguém constrói nada sozinho – precisa colaborar com o debate.
Mudar essa perspectiva depende de mais do que o Nelson Motta achando a gente bonito em artigo pra zona sul do Rio, que é quem lê O Globo. À primeira vista, deu raiva ler esse texto, que é racista (playboy branco chamando a gente de feio) e higienista, ao dizer que só ficamos bonitos com tratamento de cor, preparação de elenco, roteiro redondinho etc. Mas qual a novidade?
Ativistas pela cultura periférica como os que assinam esse texto dizem o tempo todo para as pessoas que, se elas querem letras diferentes, com menos palavrão, menos crime, menos putaria, elas precisam lutar para mudar as nossas condições de vida. A realidade constrói a cultura e vice-versa. Mas toda vez que a elite é incomodada pela cultura que nasce do abandono, ele culpa a cultura e não o abandono. Décadas depois, quando a continuidade do abandono desemboca em outras culturas “inconvenientes”, eles romantizam o abandono do passado. Foi assim que o samba, que era criminalizado no começo do século 20, virou patrimônio cultural imaterial do Brasil no começo do 21. Dez anos depois do tombamento do samba, dejavu: tramita um projeto para tentar criminalizar o funk. A elite não tem criatividade nenhuma. Deve ser por isso que tenta censurar a nossa.
Que ele tenha gostado da série é natural. Kondzilla construiu uma narrativa que encanta, ao mesmo tempo em que mostra a gente preso às poucas alternativas que a vida oferece, rodando atrás do nosso próprio rabo, como é o dia-a-dia. Na busca por ver beleza, o jornalista comemora que os atores que vivem criminosos na série fizeram escola de teatro na penitenciária de Guarulhos (SP). Seria uma bela história, se não fosse simplesmente mentira, segundo informações de pessoas do próprio elenco.
É claro que existe dignidade na periferia, senso de comunidade etc., mas não é bonito ter esgoto a céu aberto, não é bonito ter que dar o maior rolê pra conseguir vaga em creche ou ser atendido em um hospital. A gente busca beleza pra não surtar. Nelson Motta busca beleza para conseguir olhar para a nossa cara. Nada novo sob o sol.
Já estivemos melhor?
“Sintonia” tem um mérito que é ao mesmo tempo sua desgraça: escapa da rota da ficção e parece uma fotografia da quebrada de São Paulo; congela uma realidade e a entrega em seis capítulos. Qual a desgraça? As possibilidades para a ascensão dentro dessa narrativa se resumem a três: o microfone, a bíblia e a arma.
O mercado do funk – ainda bastante aquecido – viveu seu boom nos últimos anos e a utopia de “estourar” a qualquer momento é latente na cabeça da molecada; as igrejas também cresceram exponencialmente na última década e se consolidaram não apenas como uma das únicas formas de sociabilização na quebrada, mas como possibilidade de se ter um “rumo na vida”; e o crime continua sendo a velha fábrica de super-herois para as crianças da quebrada que, carentes de representatividade, se encantam ao ver pessoas parecidas com elas, vindas do mesmo território, ostentando poder e respeito.
Não por acaso, o personagem que busca realização no submundo é preto. Nando não era o boy de quebrada com recursos para estudar em escola particular; nem a menina bonita, vendedora desenrolada que, depois de entender a igreja como negócio, enxergou ali um ótimo lugar para desenvolver suas capacidades. Nando é um jovem negro esperto, curioso, sensível e inteligente (desde criança, como lembra o parceiro de biqueira Juninho) que, apesar de bom artista também, já sabe onde terá mais chances de “ser alguém”, de se destacar.
Pelo perfil da personagem, a história de Nando podia desembocar na redenção, se “Sintonia” acontecesse na época de “Que horas ela volta?” ou mesmo de “Cidade dos homens”. Em outros momentos deste Brasil, talvez rolasse uma pretinha entrando na faculdade, com o sonho de ser juíza, médica, jornalista, por exemplo. Mas, no universo desta série, não tem uma favelada ou favelado sequer fazendo seu corre por um diploma universitário.
A favela já teve mais aspirante a doutor do que tem hoje? Já. Isso não significa que eles não existam mais. Mas essa dimensão está fora da equação ultrarrealista. E essa ausência faz todo sentido porque, com a descontinuidade de políticas públicas, principalmente as ligadas à educação e à política, esse caminho de ascensão desapareceu do imaginário da quebrada. Numa triste réplica dos anos 90, ele só sobrevive numas poucas histórias de sucesso individual, insuficientes para serem representativas e, consequentemente, representadas em ficção. E é nesse ponto que a série é tão boa, tão fiel, tão perigosa. Ainda que, para dominar esses lugares que a série apresenta, você precise ser o mais ligeiro nos estudos e na vida, mensagem que fica é que a escola é incompatível com o sonho do Mc Doni.
A importância de projetos sociais que deem forma e caminho aos sonhos da quebrada
No clipe “Eu sou patrão, não funcionário”, o Mc Menor do Chapa aparece em um escritório, de terno, convidando as menininhas pra sair. Casa bonita, vários carros na garagem, um clássico clipe do “funk ostentação”. Até que, depois da festa na mansão, o produtor do MC o chacoalha na cama simples de solteiro onde ele dorme de bombeta e óculos e diz: “Aê, acorda, bora trabalhar!”
A maioria dos clipes termina antes do despertador. E faz sentido que seja assim. O clipe de funk ostentação é um simulacro, que a série retrata bem quando os MCs Doni e Dondoka discutem seu próprio vídeo: ela quer uma pantera em cena, ele imagina um jatinho pousando no campão da quebrada. É o sonho de consumo sem freio. Porque a única coisa que o Brasil contemporâneo permite almejar é ter, não ser. O que torna cada vez mais urgente a criação de novas possibilidades de sonhos – sonhos nossos mesmo e não fabricados por quem só quer nos ver como eterna reserva de mercado.
A Liga do Funk fez de 2012 a 2018 um trabalho de formação importante e alguns dos meninos que passaram por lá estão na série (Formiga, Torto, Caneta e um dos meninos que recebem Nando, na fazenda do Torto). Mas, dos cerca de 50 mil jovens que passaram por ali, se formaram, aprenderam e ensinaram, apenas cinco chegaram onde queriam. Apenas cinco! Mc João, Mc Menor da VG, Mc Kekel, Mc Lil e Mc MM… por mais esforço que se tenha é um trabalho de Sísifo. O próprio Kondzilla é exemplo. Quantos Konds vocês conhecem por aí? A real é que a história mais comum mesmo dentro da quebrada é a do personagem Juninho. Esse é o caminho mais real. Um jogo de azar, onde quem não aguenta o baque surta.
É preciso investimento na quebrada, em aparelhos públicos, em políticas públicas, em educação. Senão, nossa molecada vai se concentrar tanto em fazer o gol que vai acabar mirando o goleiro e perdendo a chance de marcar. E a quebrada tá cansada de se frustrar. Enquanto o cenário político é deserto para construções assim, qualquer iniciativa que preze pela formação dessa molecada é bem-vinda. O próprio Kond tem condições de pensar algo assim, uma universidade de quebrada, um instituto que forme esses meninos e amplie o leque de sonhos possíveis. Se não houver mudança na estrutura, uma mudança profunda, a única lógica vai continuar sendo a da reprodução.
Não deixa de ser brilhante que o mais bem sucedido produtor de sonhos da quebrada paulistana produza a série em que o sonho fica nu. Kondzilla, que criou a referência estética da quebrada que entrou no mercado de consumo, expôs nossas entranhas em “Sintonia”, pro bem e pro mal. E o que veio à tona deveria ser motivo de reflexão pra todo mundo, inclusive pros Nelson Motta da vida, que romantizam essa falta de oportunidades e veem na miséria humana, mera matéria-prima pra produzir passatempo de rico.