Foto: Arquivo pessoal

“Enquanto uma bola rolar pelo mundo, o mundo terá uma chance de paz”. O ano da frase é 1994, dita pelo então presidente da FIFA, o brasileiro João Havelange na abertura da Copa do Mundo de 1994 realizada nos Estados Unidos. João não só presidiu a FIFA, mas também a Confederação Brasileira de Desportos (CDB). Colaborou durante décadas com as Olímpíadas sendo membro do Comitê Olímpico Internacional (COI). A frase é bonita e extremamente pretensiosa porque buscava amenizar e colaborar positivamente com conflitos mundiais bélicos através do futebol. Aos adeptos de que futebol ou esporte não tem nada a ver com política deixo essa primeira reflexão histórica.

Em 1994 eu tinha 5 anos, muito adepto ao mundo dos esportes e do futebol, foi nesse ano que o time do Brasil foi tetracampeão mundial e embora eu não tenha a menor recordação da abertura da Copa do Mundo nem tampouco da frase da FIFA, fui invadido pela emoção e a paixão por jogar e torcer pelo futebol. O que essas duas narrativas têm em comum é que anunciam e constroem delírios galopantes. A do presidente em achar que o futebol era ferramenta de paz mundial e a minha em acreditar, à época uma menina, que seria jogadora de futebol, porque, né, qual seria o problema?

Os delírios, intencionados ou não, e que de alguma maneira seguem seu curso na trajetória da humanidade e do mundo do esporte, fazem referência ao tema central aqui: QUANDO atletas LGBTQIA+ tiveram “paz”, ou a possibilidade de existirem nesses espaços sem terem seus corpos submetidos aos escrutínios morais, sociais e científicos da colonialidade cisheteronormativa?

Por paixão e conforto tomarei como exemplo a história do futebol, no entanto, a história do esporte como um todo, de algum modo encontra intersecções na história do futebol e essas duas narrativas também se misturam a camadas discursivas sociais, culturais e científicas hegemônicas. Digo hegemônicas porque são essas poderosas intersecções que se esforçaram absolutamente para suprimir outras narrativas possíveis. Explico. É muito comum ouvirmos ou lermos que o futebol foi criado pelos ingleses, mas há uma série de registros e evidências de que a ideia de colocar seu corpo ao lado de outros corpos para correr e chutar algo já existia em outros lugares do mundo na mais tenra ideia de humanidade. Isso muda um bocado a perspectiva histórica que é majoritariamente veiculada. Os devidos créditos da criação do futebol são dos chineses, ou até que se prove o contrário ou ainda que eu leia alguma outra referência sobre o assunto.

E, embora seja dos chineses a criação do futebol, os discursos mais recorrentes associados ao esporte têm a ver com os ingleses, que se dizem os inventores do esporte e ao longo dessa consolidação, não só do futebol, mas do esporte como um todo, o conectaram a imagens e discursos de desafio, superação, saúde e higiene. Ou seja, há nessa constituição do esporte a valorização de uma história: o heroísmo, a coragem, a grandiosidade, os recordes e “grandes feitos”. Qualquer pessoa que tenha assistido na infância ou fase adulta histórias do programa Esporte Espetacular, exibida pelo Globo aos domingos de manhã sabe do que estou falando.

E qual é o problema desse discurso esportivo quando somado a ideia de pessoas LGBTQIA+, mulheres cisgênero e pessoas negras?  Que NÃO SOMOS tidos ou vistos, historicamente por também uma narrativa hegemônica do sexo/gênero, como pessoas heroicas, grandiosas, corajosas ou recordistas. Ao contrário, e para dizer o mínimo, ainda hoje homens gays não podem doar sangue sob justificativa de “promiscuidade”. Não é ao acaso que não há representatividade de atletas transexuais nos esportes de alto rendimento, ou então que atletas mulheres sejam desqualificadas insistentemente ou ainda que a torcida de algum time ofenda atletas pela sua cor. O futebol quando chegou no Brasil foi proibido para mulheres, negros e pobres. No Diário oficial se lia “Não poderão ser registrados como atletas os que tirem os meios de subsistência de profissão braçal, aqueles que exercem profissão humilhante (que lhes permitam recebimento de gorjetas), os analfabetos e os que, mesmo que não se enquadrem nas condições citadas, estejam abaixo do NÍVEL MORAL exigido pelo Conselho Superior de Esportes”. E mais, em 1921 o presidente da República do Brasil solicitou expressamente à CDB – Confederação Brasileira de Desportos – que a lista de atletas convocados para a seleção de futebol incluísse somente os de pele mais clara e cabelos lisos. Há uma montanha enorme de exemplos conhecidos e certamente uma outra montanha de exemplos nunca anunciados.

Portanto, é nesse cenário ideológico, político, moral e social que se fundaram as instituições que regulam todas as modalidades esportivas e também o Comitê Olímpico Internacional, sendo assim, é a narrativa dos heróis homens brancos, heterossexuais, ricos capacitados e cisgêneros que tem destaque e prestígio. Há que se considerar, inclusive, que as instituições esportivas não dissociadas desses padrões construíram uma série de rigores, métodos e definições sobre o que conhecemos do ponto de vista biológico como “competir de igual para igual”. Nesse ínterim, fruto de embates históricos, o direito das heroínas mulheres, brancas, heterossexuais, ricas, capacitadas e cisgêneros também apareceu, obviamente sob o regime do padrão masculino cisheteronormativos e de uma suposta fragilidade biológica do “competir de igual para igual”. Para os demais, o direito foi sendo sacaneado, violentado, subjugado e atualmente “existe”, mas há uma série de complicações e imbricações sociais e políticas desviando a trajetória dos atletas transgênero, intersexuais ou com “disfunções hormonais”. E mais que isso, a esse grupo de atletas, somam-se os discursos de “competir de igual para igual” calcados numa ideia de ciência que nada mais é do que também fruto desse sistema todo. Se o esporte que faz parte da sociedade sempre foi por direito e em verdade dado os heróis homens brancos, o que vocês acham que acontece com a ciência que produz informações sobre os corpos de pessoas e atletas trans?

Convido vocês a se debruçarem sobre essa questão e a gente volta a se encontrar nas escritas da segunda parte dessa história quando o Brasil foi pentacampeão mundial de futebol.

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