No mês da Consciência Negra convidamos à reflexão sobre o impacto que o apagão de direitos sobre a água e o saneamento trará para a população negra em São Paulo, principalmente mulheres

 

 

Historicamente, no Brasil, as populações negras e indígenas, em especial mulheres, são as mais afetadas com a falta de serviços de todos os tipos. Segundo pesquisa do IBGE de 2019, as famílias de mulheres negras e mães solteiras têm piores indicadores de saneamento básico e de inadequações nas suas casas do que as de mulheres brancas. Mais de 40% das mulheres negras não têm acesso à rede de esgoto, contra 26,7% das mulheres brancas. Os índices são piores ainda em relação ao abastecimento de água, sendo que 13,9% de mulheres negras estão sem acesso ao serviço, contra 9,4% de mulheres brancas.

Mesmo diante desse diagnóstico, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas propõe um projeto de privatização da SABESP, uma empresa de capital misto com ações majoritárias do Estado de SP, sob a justificativa de “antecipar para 2029 a universalização do saneamento, incluindo as áreas rurais e as urbanas irregulares hoje não contempladas, reduzir a tarifa e fortalecer e alavancar a SABESP para que ela possa operar em todo território nacional e fora do país”. Mas será que esses objetivos serão realmente atendidos com a privatização da empresa? E mais do que isso, será que essa privatização mudará o cenário de desamparo em que vivem as mulheres negras e indígenas na oferta de saneamento básico?

O mito dos estudos de Tarcísio para justificar a privatização da SABESP

Conforme o relatório da empresa, divulgado em 2022, o índice de abastecimento nos municípios que atende é de 98%, de coleta de esgoto é de 92% e de tratamento de esgoto é de 83%. São os índices mais elevados do Brasil para empresas regionais. A empresa atende cerca de 30,8 milhões de pessoas, sendo que 97% estão em área urbana e 3% estão em área rural, contemplando 375 municípios no total.

A universalização do saneamento está prevista na Lei Federal 11.445/2007, que estabelece diretrizes nacionais para o saneamento básico e define a universalização como a ampliação progressiva do acesso de todos os domicílios ocupados ao saneamento básico de abastecimento de água, esgotamento sanitário e tratamento de esgotos. Em março de 2022, a SABESP comprovou para a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (ARSESP) sua capacidade econômico-financeira para investir R$ 56 bilhões para a universalização dos serviços de água e esgotos em todos os 375 municípios que atende, em um projeto previsto para ser implementado até 2029.

O estudo contratado por Tarcísio de Freitas, no entanto, afirma a necessidade de um investimento de R$ 66 bilhões para atingir a universalização, sem explicar como chegou a este número. Curiosamente, esse mesmo estudo afirma que serão necessários R$ 10 bilhões para a “renovação de ativos e outros investimentos” para compor um “plano de investimento reforçado”. Ou seja, R$ 10 bilhões a mais para o mercado financeiro, um dos principais beneficiários em caso de privatização da empresa, que teria suas ações negociadas na Bolsa de Valores.

Vale destacar que, hoje, as áreas que a SABESP não atende são algumas favelas e comunidades urbanas, como as palafitas da Baixada Santista, as moradias em encostas e várzeas, os mangues e áreas rurais que não estão previstas nos diferentes planos de saneamento municipais. Dessa forma, observamos que não há interesse do governo de São Paulo em pressionar pela atualização destes mesmos planos municipais, da regularização fundiária ou do investimento em moradia digna. E isso tem uma razão para acontecer. Os corpos que vivem neste tipo de habitação são de mulheres negras, mães, chefes de família. O Brasil tem mais de 11,4 milhões de famílias formadas por mães solteiras, sendo que a maioria delas é negra: 7,4 milhões (dados do IBGE).

Sobre a promessa de redução tarifária: você já pensou em vender a sua casa própria e com o dinheiro da venda desse imóvel pagar aluguel por 5 anos e, depois, quando essa verba terminar, precisar se virar para pagar aluguel por toda a sua vida? Pois é. Essa proposta parece ruim, mas é exatamente isso que o plano de privatização propõe – utilizar os recursos da venda da empresa para reduzir a tarifa temporariamente. Quando esse dinheiro literalmente acabar, será necessária uma renegociação da tarifa com os acionistas. E quem serão os acionistas? Certamente não nós, não a classe trabalhadora, mas sim os grandes patrões do capital; o 1% que domina os outros 99%.

Privatizar a SABESP é ir na contramão do planeta quando o assunto é água e saneamento

Diversas experiências mundo afora mostram o aumento tarifário após a privatização das empresas estatais de gestão hídrica. 

A cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, agora possui uma tarifa social 102% maior em comparação com a SABESP; lá, a Companhia Estadual de Águas e Esgoto, CEDAE, foi privatizada em 2021. Já em Campo Grande-MS, a tarifa social é 170% maior agora em comparação ao período pré-privatização; lucro bilionário, a tarifa mais cara do Brasil e executivos com salários milionários, esse é o cenário encontrado na empresa Águas de Guariroba, concessionária privatizada que opera os serviços de água e saneamento na capital sul-matogrossense.

Ao redor do mundo, mais de 300 cidades precisaram reestatizar a água e o saneamento após privatizações que deram errado. Paris, Berlim e Buenos Aires são algumas das principais capitais globais que assistiram o sistema de água e esgoto quase falir após a venda de empresas estatais desse setor para a iniciativa privada.

Em Paris, dez anos após a remunicipalização dos serviços de água e saneamento, as tarifas ficaram 20% mais baratas, o fornecimento nunca é cortado para moradores de áreas habitacionais sociais e há mais de 1.200 bebedouros públicos espalhados pela cidade.

O racismo ambiental que acompanha a privatização da SABESP No Brasil

As mulheres negras ganham R$ 1.394 por mês em média no país (IBGE). Para se ter uma ideia, os homens brancos ganham mais que o dobro na média (R$ 3.138), e as mulheres brancas ganham pelo menos 70% a mais (R$ 2.379). As mulheres negras estão atrás até mesmo dos homens negros, que ganham 26% a mais (R$ 1.762). 

Estes dados exemplificam o quanto seremos gravemente afetadas com o aumento da tarifa de água e, consequentemente, com a expulsão para moradias ainda mais precárias, ou, até mesmo, para a rua.

Em um país profundamente desigual, onde a população negra é maioria, e é também maioria entre os mais afetados e afetadas pelas políticas privatistas e neoliberais do mercado e da Direita no espectro político, vender uma empresa responsável por fornecer um direito básico para a manutenção da vida é perpetuar o racismo ambiental que já assola a sociedade brasileira. 

São as pessoas negras, e as mulheres negras, especificamente, quem mais sofrem com as enchentes e as secas, com a fome, com a poluição, com as moradias precarizadas e com as periferias mais inseguras de nossas cidades e áreas rurais. Também serão elas, portanto, as mais afetadas com uma privatização que transformará a água e o esgoto em itens disponíveis apenas para quem puder pagar por eles.

A luta contra a privatização da água é a luta pela vida

A população do estado de São Paulo precisa de uma empresa lucrativa que gere lucro e dividendo para seus acionistas? Ou precisa de uma empresa pública de saneamento básico onde os interesses do povo são prioridade? 

Nos últimos dias, após o apagão da rede elétrica em boa parte do estado de SP, incluindo a capital e a região metropolitana, vivenciamos o descaso da concessionária Enel, que mesmo depois de 6 dias de uma queda monumental dos serviços de energia elétrica dos quais ela é responsável, ainda deixou pelo menos 15 mil pessoas sem abastecimento de eletricidade e inviabilizou seus canais de atendimento ao cliente durante todo o período de apagão.

Vivemos uma emergência climática que afeta a disponibilidade de água e, como experenciamos na crise hídrica que atingiu nosso estado nos anos de 2014 e 2015, os municípios que eram abastecidos por empresas privadas tiveram um aumento tarifário exorbitante e um racionamento que dura até hoje em bairros periféricos que, novamente, sabemos que são ocupados com os nossos corpos – os corpos negros.

A privatização da SABESP não é apenas sobre a entrega para a iniciativa privada da gestão de um serviço de abastecimento, distribuição e tratamento de água e esgoto, mas sim sobre a entrega para o capital de um bem natural crucial para a manutenção da vida, pois não há existência possível para nenhum ser vivo do mundo sem água.

A Bancada Feminista do PSOL, em conjunto com toda a bancada do partido nas casas legislativas de SP, está comprometida em impedir a efetivação desta política. Contamos com o apoio e mobilização de toda população para barrar a sanha privatista do governador de São Paulo e convidamos vocês a participarem conosco desta luta. 

Pressione pela manutenção da SABESP como uma empresa pública: participe do nosso abaixo-assinado. Acesse bit.ly/aguaedireito para saber mais. Junte-se a nós nessa batalha! Água e saneamento não são mercadorias.

Conheça outros colunistas e suas opiniões!

Colunista NINJA

Memória, verdade e justiça

FODA

Qual a relação entre a expressão de gênero e a violência no Carnaval?

Márcio Santilli

Guerras e polarização política bloqueiam avanços na conferência do clima

Colunista NINJA

Vitória de Milei: é preciso compor uma nova canção

Márcio Santilli

Ponto de não retorno

Renata Souza

Abril Verde: mês dedicado a luta contra o racismo religioso

Jorgetânia Ferreira

Carta a Mani – sobre Davi, amor e patriarcado

Moara Saboia

Na defesa das estatais: A Luta pela Soberania Popular em Minas Gerais

Dríade Aguiar

'Rivais' mostra que tênis a três é bom

Andréia de Jesus

PEC das drogas aprofunda racismo e violência contra juventude negra

André Menezes

“O que me move são as utopias”, diz a multiartista Elisa Lucinda

Ivana Bentes

O gosto do vivo e as vidas marrons no filme “A paixão segundo G.H.”

Márcio Santilli

Agência nacional de resolução fundiária

Márcio Santilli

Mineradora estrangeira força a barra com o povo indígena Mura

Jade Beatriz

Combater o Cyberbullyng: esforços coletivos