Home Office e mulheres na pandemia
E todo o montante de pessoas que não se encaixa no privilegiado grupo que tem tempo para os alívios? Tempo é uma palavra e uma realidade que custa caro.
Por Uila Cardoso
Maratonar filmes e séries, ter mais tempo para autoconhecimento, viver um dia de tédio, aprender algo novo, criar uma rotina de exercícios, essas e outras dicas e receitas prontas foram viralizadas durante esse período de isolamento social na tentativa de driblar os desafios desse momento. Essa transformação teve um impacto ainda difícil de mensurar na rotina e na cabeça de boa parte das pessoas.
Infelizmente essas dicas servem para um público muito específico, e de fato, pode funcionar para amenizar a angústia de um presente de tão poucas garantias. A questão é: e todo o montante de pessoas que não se encaixa no privilegiado grupo que tem tempo para os alívios? Tempo é uma palavra e uma realidade que custa caro.
As demarcações que cada sujeito traz pode ser um fator que alivia ou pesa a sua existência em sociedade, seja pela cor da pele, pelo gênero com o qual se identifica, as escolhas afetivas ou pela classe social na qual se insere (ou tudo junto), sobretudo, em tempos onde os alívios são escassos. Esse momento serviu para escancarar de muitas formas as diversas violências que já estavam enraizadas há tempos na sociedade brasileira e que não é novidade nenhuma para quem as vive. Uma delas é a desigualdade entre os homens e as mulheres, e esse aspecto é marcante no mundo do trabalho.
O home office foi a alternativa escolhida pelo sistema capitalista para que a roda continue girando. A literatura define home office como o exercício de atividades profissionais, seja autônomo ou para uma empresa, realizado na casa do trabalhador (Rafalski & Andrade,2013). No Brasil, caso o seu trabalho não seja essencial ou não possa ser realizado de casa, há duas alternativas: desemprego ou se colocar em risco.
Não é a toa que a rede de Pesquisa Solidária aponta em seu terceiro boletim (Castello et. al, 2020) que as trabalhadoras domésticas foram as mais impactadas com o isolamento social. Essa mesma pesquisa mostra que as mulheres ocupam mais cargos em serviços que não são considerados essenciais, ou seja, são maioria nas estatísticas do desemprego. Ainda assim, essas mulheres em casa não param de trabalhar, já que boa parte do serviço doméstico e das atribuições do cuidado recaem, historicamente, sobre as mulheres.
A jornada tripla vivenciada por muitas mulheres que trabalhavam fora já era comum e quase naturalizada em nossa sociedade. E justamente por isso havia uma certa estrutura ao redor dessas mulheres para que essa jornada fosse cumprida e elas se mantivessem funcionais ( repare bem que não escolhi a palavra saudável para esse momento do texto).
Essa estrutura, em sua maioria formada por outras mulheres (aqui há uma hierarquia racial estabelecida entre mulheres negras e brancas, mas esse assunto é motivo para um segundo texto), dava suporte no cuidado com os filhos, com as tarefas domésticas e outras responsabilidades que ainda são atribuídas à elas. Sem essa rede de apoio, mulheres mães também se responsabilizam pelo apoio aos filhos nas atividades escolares virtuais, e pela dança dos pratos de manter crianças cheias de energia dentro de casa para sua própria proteção.
Em um contexto de isolamento social, essa rede de suporte foi retirada de uma hora para outra e todas essas responsabilidades, antes compartilhada em uma rede apoio, recaiu para uma só pessoa. Os desafios do teletrabalho já são estudados nas últimas duas décadas e para os pesquisadores da área, o fenômeno é multidimensional e tem potencial para afetar o bem-estar psicológico dos trabalhadores tanto de forma positiva quanto negativa.
As dificuldades em administrar no mesmo ambiente o trabalho e a vida pessoal exigem o desenvolvimento de estratégias que deem conta de gerenciar o tempo e estabelecer uma rotina onde seja possível viver as duas esferas. Quando se trata de mulheres, essas duas esferas se multiplicam em várias outras já que o gerenciamento doméstico, o cuidado com a casa e com os filhos também podem ser entendidas como um trabalho (e que trabalho!).
O trabalho feito de casa é considerado como um fator positivo por muitas pessoas e empresas e atribuem as benesses à flexibilidade de horário e diminuição dos gastos. Em tempos que reuniões online tem mais de três horas de duração ou não responder o grupo de whatsapp do trabalho é interpretado como displicência ou baixa produtividade, é urgente questionar de qual flexibilidade estamos falando. Sobretudo quando há uma distribuição social desigual em relação às tarefas da vida cotidiana.
Não nos surpreende que essa sobrecarga absurda, junto com a falsa ideia de que o home office seja de fato flexível reflita na produção acadêmica de mulheres.. Os dados publicados publicados pela revista Dados (UERJ) e pelo American Journal of Political Science mostram pesquisas apontando a disparidade entre homens e mulheres como autores dos trabalhos produzidos durante a pandemia, e quando nos referimos às mulheres que são mães ou responsáveis pelo cuidado de outras pessoas, os abismos aumentam.
Neste contexto, é inegável os impactos na saúde mental de tantas mulheres que se identificam com os cenários descritos. A tentativa de corresponder às expectativas de dar conta de todas essas tarefas leva as mulheres a vivenciarem a frustração, o cansaço extremo, irritabilidade e altos níveis de estresse. Sair desse lugar onde a autocobrança em relação a essas tarefas não esteja relacionada ao medo de ser taxada como incompetente costuma exigir um olhar mais cuidadoso em relação a si e aos próprios limites, não é automático e não é óbvio. Isso tudo leva tempo, já que as mulheres são socializadas para corresponder a tais expectativas.
Diante de tudo isso, o que fazer? Eu não tenho uma resposta para essa pergunta e não acho que ela caiba em uma receita pronta e nem numa lista de dicas. Em termos de saúde, é preciso compreender a função do cansaço, da angústia, da raiva e da dor. Não tem problema não estar bem e está difícil se manter produtiva na atual conjuntura. O que quero dizer é que em muitos momentos, não dar conta de tudo e dizer não é a única defesa possível para que as mulheres possam, minimamente, ser.
Uila Cardoso
Preta-mulher, psicóloga e atenta.