Por Isabella Vilela

A ética deve acompanhar sempre o jornalismo, como o zumbido acompanha o besouro, de acordo com o jornalista e escritor colombiano Gabriel García Márquez. Essa frase serve de bússola para uma profissão que, em teoria, deveria sempre investigar, apurar os fatos e nunca negociar com a verdade. A missão é clara: defender o Estado Democrático de Direito, a liberdade de imprensa e caminhar lado a lado com a justiça social.

Em 1997, São Paulo era uma cidade marcada pela violência contra as mulheres, com uma média de seis assassinatos diários. Enquanto a mídia noticiava essas tragédias, a culpabilização das vítimas era frequente e o debate sobre os crimes sofria com a espetacularização. Foi nesse contexto que, entre julho e agosto de 1998, o país ficou chocado com a descoberta de um serial killer que marcaria para sempre a história do crime no Brasil: o motoboy Francisco de Assis Pereira, conhecido como o “maníaco do parque”. Ele atraía suas vítimas sob o disfarce de fotógrafo de modelos e as levava ao Parque do Estado, onde cometia seus crimes. A repercussão foi imediata.

Entretanto, o foco das manchetes sensacionalistas da época estava mais em como Francisco era descrito como “galanteador Don Juan”, do que nas vítimas. A mídia explorava seu “poder de sedução” e transformava as mortes em um show completo, enquanto as vozes dessas mulheres e de suas famílias eram silenciadas e, em alguns casos, distorcidas. Agora, 26 anos após os crimes, o jornalismo é chamado para prestar contas.

No dia 18 de outubro, a Prime Video lançou o longa “Maníaco do Parque”, dirigido por Maurício Eça, conhecido por seu trabalho na trilogia “A Menina que Matou os Pais”. Com roteiro de L.G. Bayão e pesquisa conduzida pela jornalista investigativa Thaís Nunes, o filme promete uma nova abordagem, focando nas mulheres que foram alvo do assassino e não no próprio criminoso.

O elenco traz nomes de peso, como Silvério Pereira no papel de Francisco, Giovanna Grigio e Xamã. A produção intercala ficção com fatos reais, dando protagonismo às vítimas e suas histórias. 

Em entrevista exclusiva ao Cine Ninja, Thaís Nunes, responsável por investigações em projetos como ‘Elize Matsunaga: Era uma Vez um Crime’ (2021) e ‘PCC – Poder Secreto’ (2022), revelou detalhes sobre o extenso trabalho de pesquisa que culminou tanto no filme quanto no documentário ‘Maníaco do Parque: A História Não Contada’, lançado simultaneamente. Confira!

Cine Ninja: Você possui bastante conhecimento em casos investigativos e a sua pesquisa foi fundamental para a construção do roteiro do filme sobre o Maníaco do Parque. Como foi o processo de traduzir suas descobertas em uma narrativa cinematográfica e o que mais te surpreendeu durante essa história em específico?

Thaís Nunes: Te digo sem medo de errar que nenhum trabalho da minha vida foi tão desafiador como “Maníaco do Parque”. A pesquisa começou em novembro de 2021, quando eu e minha equipe, composta só por mulheres, fomos até o acervo do Tribunal de Justiça de São Paulo e desarquivamos o processo dos crimes do Francisco. Eram 64 volumes, milhares de páginas. 

No fórum, ainda em pandemia, com máscara e luva, comecei a analisar aqueles documentos e de cara já me chamou atenção quando vi as perguntas que um juiz fez para uma das sobreviventes. Vou te dizer algumas delas: “A senhora cuspiu ou engoliu?”, “Qual o tamanho da sua blusinha?”, “Ela mostrava o umbigo?”, “A calça era de cintura baixa?”

Eu lembro que foi como uma revelação. Como assim uma vítima de um serial killer é tratada assim pelo Judiciário? A partir disso, foi uma descoberta atrás da outra. A gente esmiuçou os processos e começamos a entrevistar pessoas. A maior surpresa para mim foi entender que a verdadeira história dos crimes do Francisco, surpreendentemente, não estava disponível na internet. É o crime mais midiático da história brasileira, na minha opinião, e nunca foi contado pelo viés das vítimas. 

Até hoje, você encontra comentários em vídeos com muita gente dizendo que essas mulheres tinham uma parcela de culpa por terem acreditado no Francisco e entrado voluntariamente na mata. A pesquisa, com o olhar de hoje, um olhar atualizado, com um recorte de gênero, que sempre marca todos os meus trabalhos, mostrou que isso não era verdade.

E foi muito interessante, porque quando o projeto começou comigo, com o Maurício e com o Marcelo Braga, eles entenderam muito prontamente. Eu gosto muito de trabalhar com essa equipe, porque nem sempre a gente encontra essa compreensão e crédito dos nossos parceiros homens, mas eu tive um apoio total deles desde o início, quando eu disse: “Gente, essa não é uma história sobre como um assassino em série foi preso, mas sim por que ele não foi preso antes. E por que esse caso é o mais lembrado pelos brasileiros?”

Já te respondo: porque nenhum outro assassino em série ou assassino no Brasil teve tanto tempo e espaço na televisão aberta para contar a sua versão dos fatos.

O Francisco deu uma entrevista para o programa jornalístico de maior audiência até hoje, por 45 minutos. E deu outra entrevista para o programa de auditório de maior audiência da época, por outros 50 minutos, na qual ele teve uma ampla oportunidade de dar sua versão dos fatos. Só que ele é portador de um transtorno de personalidade antissocial, com traços de psicopatia, cuja característica principal é ser um exímio mentiroso. 

Acho que a grande descoberta, a grande novidade, o grande mérito desses dois trabalhos, tanto a ficção quanto a série documental, é finalmente propor uma visão que não seja focada no que o Francisco falou sobre si próprio, mas sim no que as mulheres disseram que viveram e também no que os profissionais de saúde mental concluíram ao avaliar o Francisco.

Cine Ninja: O filme aborda temas de manipulação e poder. Durante sua investigação, houve algum momento em que você percebeu paralelos entre o comportamento do Francisco e questões mais amplas da sociedade?

Thaís: Com certeza. O Brasil do fim da década de 90 era muito diferente do de hoje. Não era comum discutir enfrentamento à violência contra a mulher, assédio e questões de gênero. Isso se refletia nas redações. Sou jornalista de formação, fui repórter investigativa por muitos anos e, assim como a personagem principal, comecei como uma jovem jornalista em um jornal impresso. Tudo que a Elena vive no filme, eu e colegas também vivemos. Isso se traduziu na forma como a mídia representou o caso do maníaco do parque. 

Tivemos acesso, além dos documentos e processos, a centenas de horas de arquivo, jornais e matérias de revistas. A maioria dessas matérias foi assinada por homens e a cobertura era policialesca, reproduzindo o que o Francisco disse à polícia, sem análise. A série documental propõe essa análise, mostrando que, além de ser uma pessoa doente e perversa, o Francisco agiu em um sistema que silenciava mulheres. O Brasil é o quinto país que mais mata mulheres, com índices de estupro altos. Até hoje a pauta é feminina, quando deveria ser tratada como um problema coletivo.

A série, principalmente, mostra que Francisco se beneficiou desse sistema de silenciamento. Ele poderia ter sido pego muito antes. Meses antes do departamento de homicídios agir, várias mulheres poderiam estar vivas hoje. 

Isso significa para mim que o Francisco não fala só sobre ele, mas sobre uma sociedade doente, que não protege mulheres e pessoas vulneráveis, nem investiga crimes de estupro. O silêncio e a falta de engajamento da polícia permitiram que ele agisse por tanto tempo. 

Na época, essa análise não foi feita pela mídia, mas é a premissa da série documental. No filme, é possível entender os desafios da Elena como repórter e a visão dos chefes dela, que não se importavam com as vítimas ou o sofrimento das famílias, mas sim em vender jornal. 

Uma irmã de uma das vítimas diz isso no documentário. As vítimas foram tratadas como iguais, sem individualidade ou história, e como se tivessem responsabilidade pelo que aconteceu.

Muitas dessas mulheres foram retratadas como se tivessem acompanhado o Francisco porque queriam ser famosas, o que nem sempre era verdade. Algumas foram arrastadas, ameaçadas com arma de fogo ou simulação. Em 1998, quando poucos tinham celular e o Google ainda não existia, ele oferecia oportunidades de emprego. 

Essa possibilidade de trazer reparação histórica para essas mulheres é o que mais me orgulha. As pessoas vão se surpreender, porque é a primeira vez que se fala do Francisco dessa maneira. Na série, tivemos a escolha de não mostrar corpos, ossadas ou sangue, porque acredito que essa é uma forma de desumanizar mulheres vítimas de violência.

Cine Ninja: Sabemos que a mídia tem um papel central na forma como os crimes são percebidos pelo público. Acredito que na sua pesquisa você teve contato com bastante material sobre as manchetes sensacionalistas que ocorreram durante o período do caso. Na sua visão, o filme de alguma forma faz uma crítica à cobertura midiática sensacionalista ou propõe uma nova forma de olhar para esses casos?

Thaís: Eu acho que faz as duas coisas. O que mais me moveu e acredito que ao Maurício e ao Marcelo também, foi a ideia de provocar reflexão. Isso não pode se repetir. Não podemos ter um assassino sendo chamado de Don Juan por um jornal ou uma revista se referindo a uma mulher assassinada como vítima de um “conto de fadas urbano”. 

Há uma imensa responsabilidade em retratar a violência. Casos complexos como o do Francisco não têm explicação simples e não cabem em cortes de TikTok. A série documental traz essa reflexão, e o filme inspira isso. O importante é valorizar a vida das vítimas e não glorificar o assassino, tratando ele como se fosse o Hannibal Lecter.

Nos anos 90, vivemos uma era de filmes sobre serial killers, como “O Silêncio dos Inocentes”,”Seven”, etc. Quando o Brasil se confrontou com um serial killer real, a minha impressão é de que houve confusão entre o assassino de Hollywood e o Francisco, que foi pintado como um conquistador, galanteador, bom de lábia, quando na verdade não era nada disso. Ele tinha dificuldades de relacionamento e um transtorno grave. Se isso provocar uma reflexão nos jornalistas, já será um grande passo.

Inclusive, o momento mais emocionante da pesquisa foi quando fui à casa do pai da última vítima oficialmente reconhecida do Francisco. Ele não falava sobre a filha há 25 anos, mas me recebeu com uma fita que guardou esse tempo todo, esperando alguém pedir. Ele disse: “Toma, é sua, quero que você mostre ao mundo o que fizeram com a imagem da minha filha. Mataram ela pela segunda vez.” A fita era uma simulação feita por um programa de auditório, onde a filha dele aparecia dizendo ao Francisco: “Eu confio em você, me leva para o parque.” Isso foi muito forte para mim.

Além do horror que essas famílias passaram, houve uma culpabilização e revitimização das mulheres. Para mim, não há nada mais importante do que preservar a memória de alguém que se foi. Acho que o filme critica a mídia e propõe uma nova visão. A série documental talvez incomode jornalistas que participaram da cobertura, mas acho que vai chocar principalmente a geração de hoje, que não viveu a TV dos anos 90.

Cine Ninja: Como você acredita que a atuação de uma mulher no jornalismo investigativo, como o personagem da Elena, pode inspirar outras mulheres a seguirem por caminhos semelhantes, considerando os riscos e desafios dessa profissão?

Thaís: A Elena é uma personagem muito, muito especial. Eu me identifico muito com ela. Ela foi construída pelo L.G Baião, baseado em relatos que eu trouxe, não só da minha vida profissional, mas também da vida de várias colegas, jornalistas maravilhosas, muitas delas mais velhas do que eu, que abriram o caminho para que eu pudesse fazer o meu trabalho. Assim como eu também tento abrir caminho para que mulheres mais novas que eu continuem a fazer um trabalho de ainda mais impacto.

Eu sou apaixonada pelo jornalismo, uma lutadora pelo espaço das mulheres jornalistas. Em 2016, fui co-fundadora de um coletivo chamado “Jornalistas Contra o Assédio”, e, para mim, é muito importante, é um sinal dos novos e bons tempos ter uma personagem incrível como a Elena protagonizando um filme que, talvez, em outra época, teria sido protagonizado pelo Francisco.

Eu acho que a coragem da Helena e a transformação que ela vive durante o filme é muito inspiradora e eu não tenho a menor dúvida de que vai inspirar novas gerações de mulheres jornalistas. E mais do que inspirar meninas a fazerem o curso de jornalismo, a serem comunicadoras, é mostrar que é muito importante a narrativa feminina. Não é só as mulheres existindo ali numa redação formada por homens, mas quando a narrativa das mulheres se impõe, também é muito importante o nosso olhar.

A gente já viveu anos e anos com o nosso olhar não sendo levado em conta, e, para mim, a presença e a existência dessa protagonista é uma prova de como o olhar feminino traz novas nuances e personagens únicas e originais, como a Elena.

Cine Ninja: Na sua opinião, o que torna o true crime um gênero tão procurado e tão adorado pelas pessoas?

Thais: Eu acho que, primeiro, parte de uma necessidade natural nossa, enquanto seres humanos, de criar uma barreira: “essa pessoa é diferente de mim”. Porque, de fato, é muito difícil compreender que alguém como o Francisco, capaz de fazer aquilo que ele fez e que, segundo ele próprio, faria de novo se tivesse oportunidade, é um ser humano como eu. Então, eu acho que o fascínio nasce dessa tentativa de compreender como alguém que é um ser humano de carne e osso como eu é capaz de fazer aquilo que é inimaginável para mim.

Em relação às mulheres, que, segundo todas as pesquisas, são o público-alvo de true crime; elas são as maiores consumidoras, e,  quem normalmente me dá feedback dos trabalhos que eu faço, são, sei lá, 80% mulheres. Eu acho que nós somos tão vulneráveis na sociedade, e a possibilidade de uma mulher ser vítima de violência é tão grande, que de alguma maneira queremos assistir para compreender a mente do criminoso e também, de alguma forma, como você disse, para nos blindar, nos proteger.

Eu, Taís, só me envolvo em casos onde eu enxergo que há temáticas universais que podem ser discutidas a partir daquela história. Eu não sou a favor de retratar o crime pelo crime, a violência pela violência, porque eu acho que isso vira espetacularização. Agora, todos esses casos, todas as pessoas com quem eu trabalhei até hoje, além do crime, me permitiram discutir outras coisas muito importantes.

No caso do Maníaco do Parque, por exemplo, é possível discutir a cultura de estupro, a capacidade da polícia e das autoridades de acolher vítimas de violência e levar adiante esses processos. Entender por que o Francisco começou, por que ele agiu assim. Portanto, tem que despertar uma reflexão sobre o que nós, como sociedade, podemos fazer com pessoas como Francisco e, mais ainda, como podemos evitar que novos Franciscos existam.

Eu acho que é tudo tão complexo, mas ao mesmo tempo tão necessário, porque o assassino em série é uma figura presente em todas as sociedades, e, normalmente, isso é uma consequência biológica, genética, social, enfim. Então, esses projetos de true crime, onde a gente consegue explorar o caso com mais profundidade e camadas, são muito interessantes, porque eles suscitam essas discussões.

Eu vivi isso muito fortemente com o caso da Elize Matsunaga. Foi impressionante como o documentário provocou discussões mundiais sobre até onde um relacionamento abusivo pode chegar. Então, eu acho que é isso. Eu aceito as críticas ao gênero, acho que elas devem ser feitas, inclusive, mas também acredito que, quando bem feito, quando um true crime é feito com propósito, como foi agora no Maníaco do Parque, podemos trazer algo muito positivo para a sociedade, que é a prevenção à violência.

Eu acredito nisso. Sou uma idealista e acho que violência só se combate e se previne com informação, com discussão e com reflexão.

Taís Nunes. Foto: Divulgação