A miopia alimentar e o direito de escolher o que comer
Nunca uma goiaba madura na feira chamará mais atenção do que o mais novo doce lançado no intervalo do desenho animado. Já pensou por que?
Conhecer e habituar-se é algo tão envolucrado na existência humana que parece se tornar algo mecânico e involuntário ao passo de sentirmos duvidas ao sermos questionados porque gostamos mais de camisas polo do que regatas, ou mesmo colocar em cheque uma criança quando se pergunta de onde vem o leite que toma na merenda? Provavelmente dizer que da geladeira não seria uma resposta má educada, mas um alerta para a miopia que a sociedade tem da origem dos alimentos e de quem os produz.
Na mercadologia, a Miopia analisa a concentração nos produtos em vez dos clientes, longe de querer emplacar uma categoria, mas para partirmos dessa lógica, a miopia alimentar se expressa quando concentrar-se no produto final e não de onde e como ele veio, o fato de ocultarem esse processo o faz parecer inexistente, e que o caminho do alimento começa no supermercado e não na terra e nas mãos de camponeses e camponesas.
No entanto a visão curta que o mercado lança sobre os alimentos nada mais é que intencional, as novas gerações se criam sem o contato direto com a terra e tão pouco com seus frutos, se esse processo não for revertido em curto prazo, em poucos anos teremos uma humanidade que ignorará uma laranja ou um ovo in natura, não por não serem de seu gosto particular, mas pelo duro fato de não reconhecer o alimento em sua condição natural, tentaremos explicar isso a a partir do processo de percepção que é uma das bases da formação do conhecimento humano.
A camuflagem da produção de alimentos
A construção da compreensão da realidade é baseada pelos estímulos que recebemos e que interpretamos, a decodificação do que está em nosso entorno e a correlação das pessoas com esse ambiente imprimirá as nossas noções de conhecimento, nesse contexto o estimulo visual é fundamental, imagine então atualmente que criança que por meio da escola, ou da família em uma grande cidade poderá ver uma vaca sendo ordenhada? Ou mesmo uma criança que vive no campo mas que no pelo processo de integração a industrial tudo ao seu redor são parcelas de um mesmo cultivo e nenhum é a pecuária? Sem o estimulo visual, mesmo que a pecuária de leite siga existindo não será embasada como realidade por esses sujeitos, assim depois de formarem essa concepção eles terão dificuldade em reconhecer isso ou mesmos podem não compreende-la.
Outro fator importante na construção do conhecimento é que a percepção desses elementos são estimulados pela atenção, que conduz a seleção de algo que nos interessa, em uma sociedade onde a produção de alimentos é invisibilizada, camuflada a força pela industria e pelo processamento descontrolado que destroce as características mais naturais dos alimentos. Nunca uma goiaba madura na feira chamará mais atenção do que o mais novo doce lançado no intervalo do desenho animado, a industria dos alimentos conduz a atenção da sociedade para um mundo longe do campo e dos produtores e produtoras de alimentos. E mesmo que esses camponeses e camponesas que produzem os alimentos sigam existindo não são percebidos, logo não farão parte da compreensão da sociedade.
O Resultado da miopia dos alimentos
Com isso que população que se importará com a situação das famílias camponesas que trabalham e produzem alimentos? Se são exploradas por uma grande empresa, ou mesmo quem se importará com a adulteração por exemplo do leite na industria retirando seus nutrientes, se jamais puderam provar um leite integral de fato? A miopia dos alimentos interessa tanto ao mercado pois criam populações que jamais se importarão com a qualidade do que se consume, continuarão não percebendo as mobilizações do campesinato por melhores condições de vida e trabalho, pois para eles o que tem haver as mulheres e homens do campo com os produtos que o “supermercado oferece”?
O caso recente da “Farinata”, um produto processado que parte da gestão do prefeito da cidade de São Paulo, João Dória, é um dos exemplos mais viscerais disso, mas que seu desfecho nos coloca ainda uma fagulha de esperança. A Farinata é um composto de produtos prestes a alcançar a data de vencimento que seria transformado em ração distribuída em especial nas escolas de São Paulo. O resultado foi uma revolta popular contra a medida. Isso mostra que o elo entre os alimentos e essa geração ainda não foi rompido por completo, mesmo que a miopia alimentar exista, mas ainda não comprometeu em sua totalidade o hábito alimentar. O que não significa que isso não mudará. Se a onda da miopia alimentar seguir crescendo como está, chegaremos a um momento onde não existirá nenhuma repulsa a produtos similares à Farinata em quesito nutricional e de imbecilidade de que os propõe.
A revolta contra a Farinata que ocasionou o recuo da gestão de Dória mostra que é possível recuperar a visão para com os alimentos, podendo enxergar também quem os produz e como os produzem.
A mídia joga baixo na camuflagem dos alimentos e de quem os produz, diariamente nos bombardeiam com as propagandas pop do agronegócio. Trabalho escravo, agrotóxicos, grilagem de terras são varridos para baixo de um belo tapete, tudo isso segue existindo mas não podemos enxergar, passam um corretivo sobre a produção de alimentos do campesinato que garante 70% do que se consume atualmente. Já pensou qual foi a ultima vez que viu uma propaganda onde camponeses e camponesas mostram os produtos que você irá consumir? ou melhor, quando você viu uma propaganda assim? Talvez nunca. A mídia impede que a sociedade conheça quem de fato produz o que consumimos, como ser grato a alguém que achamos que nunca fez nada por nós? Difícil não é? porque invisibilizar uma população que nunca foi se quer consultada se queria viver no anonimato, sem dúvidas ninguém gostaria.
O Resultado da miopia alimentar faz com que a humanidade se lance a uma aceitação pacifica e “natural” de um resíduo industrial que um dia foi alimento, que é pobre nutricionalmente, sem sabor, e sem vida. Permitirá níveis ainda maiores de exploração dos camponeses e camponesas, conflitos ainda mais violentos contra as populações rurais sem produzir nenhuma comoção ou revolta popular. Não podemos aceitar isso com algo voluntário ou inevitável, precisamos reconduzir nossa percepção e nossos olhares para os alimentos e para quem os produz.
Combater a miopia alimentar é a forma de que a a sociedade conheça e sinta o sabor de uma alimento de fato, e tenha a possibilidade e o direito de escolher de verdade o que comer, e não de aceitar aquilo que já foi escolhido.
Bruno Pilon, Militante do Movimento dos Pequenos Agricultores/ Via Campesina