Ah, a sofisticada arte do boicote patriótico! Nada mais previsível — e deliciosamente irônico — do que ver uma parcela de conservadores, que usualmente defende o livre mercado e a racionalidade econômica, entrar em colapso político-existencial por causa de um trocadilho publicitário de fim de ano. Mas não é sobre chinelos.

Uma das coisas que mais admiro nas Havaianas é o fato de terem transformado o “pé de chinelo”, historicamente sinônimo de alguém sem importância, em objeto e sujeito de desejo, convertendo a sandália em símbolo de um Brasil desencanado e livre.

O dress code dos “pobres”, as sandálias da humildade — como diria Nelson Rodrigues — chegou aos pés de pessoas de todos os grupos sociais e se espalhou pelo mundo afora. O “estilo Brasil” de vida descomplicada, de pé no chão, no qual mesmo os mais pobres e vulneráveis buscam uma felicidade possível, na cultura da rua, da praia, da casa. E claro que até a democracia de chinelo incomoda.

As Havaianas precisaram se distinguir: foram da sandália que “não larga as tiras e não tem cheiro” às versões customizadas com cristais Swarovski. Porque, sim, a subjetividade ameaçada pelos “iguais” precisa de “distinção”; não pode calçar o mesmo chinelo. Evidentemente, o boicote extremista não é sobre o chinelo — nem sobre o “pé direito”.

Após uma série de derrotas em 2025 — da prisão de Bolsonaro à inédita condenação de militares golpistas, passando pela perda de mandato de Eduardo Bolsonaro, entre outros reveses — o discurso de ódio extremista precisa extravasar e encontrar um fantasma, um inimigo a ser combatido. Sobrou para os chinelos.

As então companheiras fiéis de churrascos, praias e idas à padaria transformaram-se, de repente, em objetos de subversão esquerdista. O motivo? A marca sugerir, em sua campanha de Réveillon, que talvez não seja ideal começar o ano “com o pé direito” — afinal, isso implicaria iniciar com apenas um pé, vacilante — mas sim com os dois pés, firmes, decididos, indo com tudo. Não estamos falando de textos difíceis, herméticos ou sofisticados, mas de publicidade feita para vender sandálias.

Eis que, em um rasgo de literalismo — não apenas a Terra Plana, mas a linguagem literal como centro da comunicação — a metáfora vira campo de batalha ideológica. A campanha, que é apenas uma brincadeira com um clichê motivacional (e, claro, uma estratégia para vender mais pares de sandálias), passa a ser lida como uma declaração de guerra contra conservadores, bolsonaristas, a extrema direita e, aparentemente, contra a própria estabilidade emocional de quem acredita que o universo é uma conspiração permanente regida por um novo fundamentalismo idiomático. A extrema direita acaba, assim, parodiando o campo progressista ao perder completamente a mão — e os pés, no caso — em um cancelamento rasteiro.

A performance da indignação é digna de um filme do Monty Python: bolsonaristas “soltando as tiras”, cortando sandálias, jogando pares no lixo. Mas não se enganem: o ódio direcionado ao objeto não é apenas contra a sandália, e sim contra outro “símbolo nacional” — Fernanda Torres, premiada e reconhecida internacionalmente, protagonista de um filme vencedor do Oscar que faz a crônica da ditadura militar e que subiu ao palco do Ato Musical: O Retorno, em Copacabana, ao lado de outros artistas, contra a PEC da Dosimetria e contra a anistia a golpistas.

A disputa é clara: estragar, destruir, enxovalhar símbolos — seja uma atriz querida e premiada, seja um chinelo que calça o Brasil. O que virá em 2026?

É no ritual de destruição física que a frustração encontra sua expressão mais pitoresca e, psicanaliticamente, mais reveladora. A raiva, incapaz de sublimar derrotas políticas, encontra um bode expiatório tangível: o chinelo de borracha. A cruzada doméstica contra as próprias sandálias é patética: cortam-se tiras, arremessam-se pares em latas de lixo com vigor performático.

O indivíduo, sentindo-se politicamente impotente, reassume o controle do mundo exercendo poder absoluto sobre um objeto inanimado. O mundo complexo passa a se dividir entre “nós” e “eles”; a sandália, agora “esquerdopata”, é banida dos armários. A Havaiana é violentamente expulsa do reino do bem e transformada em totem do mal a ser exterminado.

Em última instância, trata-se de um combate tragicômico: de um lado, a imaterialidade das ideias e do descontentamento político; do outro, a materialidade frágil de um chinelo. E, ao fim do dia, quem pisa no prego ou na areia quente é o próprio pé descalço do enfurecido.

Enquanto isso, o marketing das Havaianas deve estar rindo à moda antiga, com os dois pés para o alto. Ganharam mídia espontânea, reforçaram a imagem de marca ousada, perderam e ganharam seguidores e, de quebra, provaram que, no Brasil, até uma sandália pode virar espantalho político.

Vamos colocar os pés no chão, porque 2026 já começou. Já escolheu seu modelo?