‘O Delegado’: série policial com sotaque pernambucano é anunciada na CCXP 2025
Marcelo Lordello e Leonardo Lacca comentam bastidores da série elogiada e produzida por Kleber Mendonça Filho e Emilie Lescaux
Por Daniele Agapito
Depois de atravessar o Monumento do Ipiranga com as janelas do táxi perigosamente abertas, desde Perdizes pela zona sul de São Paulo, numa quinta-feira abafada pelos raios fúlgidos de dezembro incidindo diretamente no olho esquerdo, de onde, sofridamente, consegui avistar alguns bons grafites, a porta de entrada do Simba Safari e nenhuma margem plácida, cheguei à CCXP com pressão baixa, porém viva, para cobrir “O Delegado”, nova série policial do Canal Brasil produzida por Kleber Mendonça Filho e Emilie Lescaux; escrita e dirigida por Marcelo Lordello e Leonardo Lacca, sócios da Trincheira Filmes.
Munida de uma banana-nanica, duas bolachas e um Hollyland Lark M2 recém-adquirido, a pressão arterial foi subindo para 11 e uns quebrados. Ressuscitei para entrevistar os criadores da série, que, segundo Kleber, direto do telão no aeroporto de Marrakesh, “é foda”; um dos melhores roteiros que caíram na mesa dele, senão o melhor.
Emilie, com um sotaque franco-pernambucano inesperado, também coloca suas apostas no projeto que, adianto, foi “acupunturísticamente” escalado. No elenco, estão um dos melhores atores de sua geração como protagonista, Johnny Massaro; Dona Tânia Maria (atriz revelação de “O Agente Secreto”, que já tem até uma costureira bordando seu vestido do Oscar); além de Virginia Cavendish e Alice Carvalho.
A premissa da série é assim: um delegado playba, idealista, típico da classe média recifense, com ares de poeta, barba feita e cabelo engomadinho, assume uma delegacia na periferia e, aos poucos, vai levando choques de realidade. Literalmente: no vídeo teaser exibido no palco Thunder, aparece uma cena de treinamento de rotina em que o garoto leva algumas descargas elétricas pelo corpo.
Daniele Agapito/Cine Ninja: O que vocês querem provocar em quem for assistir O Delegado?
Leonardo Lacca: Muita coisa boa. É uma série policial dentro de um contexto muito específico, local, com nossos códigos, nossa lógica, nosso ponto de vista recifense. Não espere aquela delegacia superchique que tem nas séries gringas… Não. A gente tá fazendo a delegacia mais próxima da nossa realidade. Fizemos uma pesquisa muito grande pra poder chegar nessa abordagem. E sempre chamou muito nossa atenção essa onda de concursos públicos, policiais que vão se formando… sair da academia e, do nada, lidar com a vida real. Isso é fascinante.
Marcelo Lordello: Interessa muito pra gente as “paisagens humanas” do Recife. Que tipo de pessoas a cidade gera enquanto personagens? Que histórias essas pessoas carregam? Que fala, que cultura a gente traz pra série? E que tipo de tramas o Recife permite contar com mais autenticidade do que as séries que a gente tá acostumado a ver no Brasil? Uma coisa que Léo sempre fala, e que eu acho importantíssima, é essa figura do concurseiro. Esse cara de classe média do Recife, que mora em Boa Viagem e vai trabalhar na R4 (bairro periférico ficcional do Recife), dentro da precariedade da segurança pública nacional. Então, a gente tá falando do Recife, mas também do Brasil. Nos dedicamos muito à construção dos personagens, pra que fossem carismáticos, mas que também falassem desse ambiente que estamos explorando.
Cine Ninja: Como foi esse processo de escrita que recebeu tantos elogios do Kleber?
Leonardo: Tem um negócio muito interessante: a primeira faísca da série surgiu quando um amigo meu, amigo de Marcelo também e de Tião (colaborador do roteiro), passou na faculdade de Direito. Ele era super sensível, poeta, no colégio; até ator ele foi. Aí, do nada, virou delegado em Brasília. Quando ele volta ao Recife, chega armado. E a gente ficou: “Cara, você armado? Você…?”. Foi muito estranho. A gente nunca imaginou que esse cara viraria policial.
Marcelo: E por vocação, né?
Leonardo: É, ele se descobriu ali e começou a tentar ser policial de um jeito muito específico… quase idealizado. Não é totalmente baseado na vida dele, mas foi uma faísca pra gente desenvolver esse universo. E aí pesquisamos esse universo da formação na academia, que é muito particular em Pernambuco.
Marcelo: E teve essa fagulha inicial das histórias que esse amigo contava, e do absurdo de algumas situações, que acabou dando muito tom da série. A gente passou por uma fase de pesquisa intensa: acompanhamos uma turma na formação na academia de polícia; depois, visitamos órgãos e delegacias, conversamos com muita gente pra entender clima, contexto, histórias, personagens. A partir disso, pensamos numa trama desse delegado novo, de classe média, de uma certa bolha, que assume uma delegacia periférica e vê um contraste social imenso, com todos os desafios que esse cara idealista teria que enfrentar. Foi um prato cheio pra construir personagens super ricos. Todo mundo comenta isso: é uma série em que as pessoas criam vínculo com todos os personagens, pra além da trama policial. O argumento foi escrito a seis mãos com Tião, nosso sócio. E passamos por uma fase extensa de roteirização. Quando chegamos no set, tava todo mundo muito alinhado. Foi uma produção muito rica, com equipe majoritariamente de Recife e do Nordeste, 95%, talvez até mais.
Cine Ninja: Os olhos do audiovisual brasileiro estão voltados para Recife. O que tem nesse molho?
Leonardo: O molho? Acho que o baiano e o pernambucano têm o molho. (risos)
Marcelo: Eu que o diga!
Leonardo: Ele é meio baiano, morou um tempão em Salvador. Mas, brincadeiras à parte, é muito massa fazer parte desse movimento. Tanto eu quanto Marcelo trabalhamos em “O Agente Secreto”. Eu fui diretor assistente e fiz preparação de elenco, e Marcelo fez câmera e fotografia. Tem esse intercâmbio muito forte entre realizadores e realizadoras. No caso de Kleber, especificamente, que é um dos produtores da série, ele acompanhou desde o início, leu os roteiros. Teve uma hora que ele falou: “Quero dirigir um episódio”. Quem sabe em O Delegado 2, né? E trabalhar com Emilie também… Ela é uma grande produtora e amiga. A gente se sente muito em casa. É muito importante produzir ao lado de pessoas com quem você compartilha intimidade e afinidades artísticas.
Marcelo: E tem esse histórico colaborativo que vai muito pro lugar do estímulo ao outro: ao trabalho do outro, ao olhar do outro, à criação dos outros filmes. A gente foge um pouco daquele padrão do cinema do eixo, que às vezes engessa. Claro que tem gente do Rio e São Paulo fazendo filmes superautorais, mas, como a gente tá um pouco fora desse mercado, tem uma certa liberdade criativa. E acho que O Delegado busca essa autenticidade sem amarras, sem contrato engessado, sem ficar tentando agradar streaming específico. Essa liberdade cria histórias instigantes, e acaba instigando o público a provar desse molho.
Ainda no camarim da CCXP, curiosa sobre as produções audiovisuais do Recife ganhando fama no circuito internacional, pergunto diretamente a Emilie Lescaux, que trocou a França pela capital pernambucana:
“Eu aprendi a minha função de produtora fazendo filmes no Recife. Eu nunca fui produtora na França. Então acho interessante como, ao longo desses vinte anos, a cena que tava surgindo naquele momento foi se consolidando. Hoje, viajando em festivais ou falando com pessoas cinéfilas, elas já identificam o Recife, já sabem onde é o Recife, já sabem o que é o Recife através da linguagem do cinema, do mesmo jeito que a gente conheceu Nova York, Los Angeles…”
Ao fim dos compromissos, deu para circular pelo evento, ver os cosplays de GI Joe Cobra, Up – Altas Aventuras, O Exorcista, “Bob” Beetlejuice e até o famoso porquinho da Paulista dançando “Ragatanga”. Humor, por sinal, também é um ingrediente da série pernambucana. Sem mais spoilers, mas, pra quem já tá na expectativa da primeira temporada, Dona Tânia avisa logo: “Na vida eu não faria nada do que fiz em O Delegado.”

A série tem lançamento previsto para 2026 pelo Canal Brasil.






