Pra que serve a política de extermínio?
A política de extermínio não traz segurança: só multiplica o luto, o racismo e a desigualdade no país.
A segurança pública no Rio virou um luto em que duas cenas se cruzam. De um lado, mães que vasculham listas de feridos e mortos à procura dos filhos; de outro, famílias de policiais em luto. Quantas vidas mais precisam acabar para admitirmos que o método do extermínio não resolve o problema?
Na operação mais letal da história do Rio de Janeiro, com mais de 100 mortos — quatro policiais entre eles —, o governador vendeu “eficiência”. É o retrato de um Estado que só entra nas comunidades com fuzil em punho. O roteiro se repete: territórios pobres, majoritariamente negros, tratados como “teatros de operação”; moradores convertidos em suspeitos pelo CEP; o alvo escolhido por cor e classe. A criminalização da pobreza, colada ao racismo estrutural, fabrica a favela como “inimigo interno”. Essa lógica corrói a cidadania nas periferias e também vitima os próprios policiais, usados como carne de canhão. O saldo é perverso: os números celebrados no gabinete são corpos empilhados no território.
O perfil de quem morre é, em sua maioria, jovem, negro e pobre. E, embora pouco se diga, muitos dos policiais mortos também são negros e periféricos — recrutados nas mesmas comunidades que depois são tratadas como território inimigo. A guerra escolhe a vítima, a mão de obra e define o campo de batalha.
Por trás disso, há um imaginário conservador, resumido no bordão “bandido bom é bandido morto”, que mistura medo e vingança e associa automaticamente pobreza, negritude e favela ao crime. Governos surfam nesse atalho emocional. Em São Paulo, operações como a Escudo/Verão — com 56 civis mortos e 2 policiais em 2024 — viraram “modelo de força”. Em Minas, flerta-se com o receituário de exceção de El Salvador, exaltado por autoridades como se o direito fosse obstáculo. O resultado? Políticas autoritárias em que eficiência se mede por “corpo no chão”.
Enquanto familiares de policiais exigem planejamento, inteligência e equipamentos que salvem vidas — com protocolos de uso progressivo da força e perícias independentes —, as organizações de direitos humanos apontam na mesma direção. Sem investigação autônoma e sem rastrear dinheiro e armas, a política seguirá matando pessoas e enlutando famílias.
Abandonar a lógica de extermínio é substituir incursões eleitoreiras por inteligência permanente; estabelecer metas públicas de redução de homicídios e letalidade com transparência; garantir controle externo robusto; adotar câmeras corporais com auditoria séria; proteger testemunhas; investigar financeiramente milícias e o varejo de armas; e investir em prevenção social que ataque a raiz do recrutamento do crime. Tudo isso sustentado por formação continuada e cuidado em saúde mental para a tropa.
A contagem que deveria importar não é a dos mortos, mas a de quem volta inteiro para casa — morador da periferia ou policial. Do jeito que está, a juventude preta e pobre vira alvo, e o militar, mártir. Isso corrói a confiança da população nas instituições de segurança. A derrubada eficaz da criminalidade vem por meio da inteligência, da prova e do devido processo legal.
A alta letalidade não significa menos crime. Na prática, desloca conflitos, desorganiza vínculos comunitários e destrói a cooperação essencial para investigações de qualidade. Segurança que funciona começa no território, com policiamento comunitário sério, metas claras e presença contínua — capaz de construir confiança real entre moradores e agentes. Isso se conecta à inteligência de verdade: integrar bases de dados, mapear redes, atacar a lavagem de dinheiro e confiscar bens. Sem estrangular o fluxo financeiro do crime, todo o resto é encenação.
No dia a dia, câmeras corporais com protocolos nítidos protegem o cidadão e qualificam a prova, enquanto a valorização policial precisa ir além do contracheque. É preciso treinamento, equipamento adequado e acompanhamento psicológico. Sem isso, a chamada bravura vira imprudência induzida. E tudo isso só faz sentido acoplado a políticas sociais que contemplem educação, saúde, cultura e esporte — caminhos que deem perspectiva à juventude.
A política de extermínio serve, no fim, para manter intactas as desigualdades que ela própria produz. É um genocídio que perdura desde o colonialismo. Mata-se em nome da ordem, mas o que se produz é mais luto, mais ódio e menos confiança pública. E a pergunta do título permanece: pra que, afinal, serve uma política que só produz morte?