Por Kaio Phelipe

Nascido em 1966, em Fortaleza, no Ceará, e com raízes na Argélia, Karim Aïnouz utiliza o cinema como ferramenta para refletir sobre temas como exílio, identidade, pertencimento e desejo. 

Em 2002, lançou seu primeiro longa-metragem, Madame Satã, filme sobre uma das figuras mais lendárias da cultura brasileira. A obra tornou-se um marco no debate sobre a comunidade LGBTQIAPN+ e nas discussões sobre o racismo no Brasil.

Doze anos depois, em 2014, lançou Praia do Futuro, no qual mais uma vez colocou a comunidade LGBTQIAPN+ no centro da narrativa, enfrentando certa resistência do público.

A carreira de Karim conta ainda com outros filmes, como O Céu de Suely, de 2006, onde o cineasta apresentou uma característica importante de suas futuras obras: o protagonismo de mulheres; A Vida Invisível, que conquistou o Prêmio Um Certo Olhar, do Festival de Cannes, em 2019; e o documentário Marinheiro das Montanhas, gravado durante sua primeira viagem à Argélia, país de origem de seu pai, e lançado em 2021. 

Ao longo da carreira, Karim Aïnouz tem reafirmado o poder do cinema como ferramenta política. Em entrevista exclusiva para a Mídia Ninja, o cineasta destaca a importância do Ceará em suas narrativas e fala como a conexão com a Argélia movimenta sua forma de olhar para o mundo. Karim fala ainda sobre a importância de contribuir com a comunidade LGBTQIAPN+ e sua relação com o Festival Mix Brasil, evento anual que acontece desde 1993 e que se tornou o festival mais importante para a comunidade queer no país.

Cine Ninja: Qual é a importância do Ceará e do Nordeste para as suas narrativas?

Karim Aïnouz: O Ceará e o Nordeste são fundamentais em todos os meus filmes, mesmo nos que não são narrados ou filmados lá.

Quando a gente pensa nas minhas primeiras obras, muitos personagens estão lá, saem de lá ou voltam para lá. O Céu de Suely é sobre uma personagem que volta para lá. Madame Satã é sobre um personagem migrante, que sai do Nordeste, de Pernambuco, como aconteceu com grande parte da população nordestina até a década de 2000.

O Ceará ocupa um lugar muito importante na minha imaginação. O lugar da infância é indelével da memória. É um lugar para onde eu sempre estou voltando.

Todos os meus curtas-metragens foram feitos lá. 

Mesmo que indiretamente, o Ceará imprime a presença dele nos filmes. 

Por exemplo, A Vida Invisível foi filmado no Rio de Janeiro e é sobre um personagem carioca, mas grande parte dos diálogos foram inspirados na minha família, especificamente na minha avó, no Ceará.

Então é sempre um lugar de inspiração e de retorno em todos os filmes. 

Tem outros dois fatores que colocam o Ceará como fundamental. Um é a percepção de cor e de luz. É um lugar onde a luz é muito acesa, é um lugar no Equador, onde a percepção de cor é muito saturada. Isso está presente em todos os filmes.

E a outra coisa que contamina todos os filmes é uma sensação, uma existência do humor, que eu acho que é muito importante e que a gente tem no Ceará. 

Foto: Maria Lobo

CN: Como a Argélia movimenta o seu jeito de olhar o mundo e como tem recebido as notícias recentes sobre a Palestina?

KA: A Argélia sempre teve uma presença um pouco fantasmagórica na minha vida. A Argélia está no meu nome e no meu sobrenome, mas até há pouco tempo nunca tinha ido lá. 

É engraçado porque ela está presente em Madame Satã. Tem uma música que é cantada pela Renata Sorrah e se chama As Noites de Argel. No Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo, tem uma música que é da comunidade de onde eu sou na Argélia. Então é um lugar que está presente de maneira quase incidental em diferentes filmes.

Mas como eu não tinha ido lá, era sempre um lugar do mistério, do desconhecido.

Tem uma coisa da Argélia que sempre foi muito importante para mim, que é a sensação do orgulho. A Argélia é um pouco prima do Ceará, um lugar isolado, longe, que pouca gente conhece, mas que sustenta o orgulho de um lugar periférico e uma força muito grande.

Outra questão importante em relação a Argélia é que é um país que se emancipou de um domínio colonial muito forte, o domínio colonial francês. Sempre que penso em Argélia, penso em emancipação e em seguir a própria história. 

Nesse sentido, é um lugar que sempre esteve presente. Em um primeiro momento, apenas como sensação. Mas, quando fui para a Argélia pela primeira vez, que foi quando fiz o Marinheiro da Montanha, em 2019, entendi que os lugares que se emanciparam do colonialismo sustentam uma autoestima muito forte. Isso é algo que aprendi estando lá.

A Palestina tem um caso muito específico e triste. Já fui à Faixa de Gaza. Estive lá em 2014. Decidi ir porque é um lugar que a gente fala muito, mas eu precisava ver com os meus próprios olhos. É muito triste a situação da Faixa de Gaza, é uma segregação absoluta. O que está acontecendo agora é muito chocante e precisamos falar e alertar o mundo. Não é possível ser conivente ou cúmplice.

A história da Palestina é muito ligada à história da Argélia. Um dos maiores aliados da Argélia, no sentido político, são os palestinos. Exatamente pela sensação de dominação, de ocupação de um poder colonial.

No momento de independência da Argélia, existiu um movimento de solidariedade de todas as nações que tentavam se emancipar do colonialismo.

Lembro que em 2019, quando estive na Argélia pela primeira vez, eu estava em uma manifestação pela democracia e tinha uma parte da manifestação dedicada à emancipação na Palestina.  

São países muito próximos e são culturas muito aliadas.

CN: Quando foi seu primeiro contato com a história de Madame Satã e quando decidiu fazer o filme?

KA: O primeiro contato que tive com Madame Satã foi através de uma boate em São Paulo que tinha esse nome e eu adorava ir. Era uma boate lendária da noite paulista e que ficava no bairro do Bixiga. Comecei a ir lá em 1983 ou 1984. Lembro que quando a gente entrava, tinha uma mulher comendo repolho em uma banheira. Era um negócio maravilhoso, super maluco. Era um lugar LGBTQIAPN+, mas também era um lugar punk. Eu adorava o nome Madame Satã, um nome tão bonito, e ficava sempre com isso na cabeça, mas não sabia quem era. 

Eu descobri que tinha uma coleção de uma editora na década de 1980 que fazia algumas biografias curtinhas, e tinha biografia de vários personagens da cultura brasileira, incluindo Madame Satã. Foi quando descobri que de fato era uma pessoa. Eu fiquei fascinado. Vi que tinha algo na pessoa dele que é muito específico do Brasil. Negro, nascido em Pernambuco, migrando para o Rio de Janeiro, filho de escravizados, que nasceu livre em 1900, que se vestia de mulher, mas era gay, e um grande jogador de capoeira. Uma série de características que podem soar contraditórias, mas que são muito definidoras da identidade brasileira. 

A identidade brasileira foi muito heteronormativizada a partir da década de 1930. Entre as décadas de 1910 e 1930 havia uma exuberância da cultura brasileira e da cultura afrobrasileira no Rio de Janeiro, era muito interessante. Foi aí que me bateu a vontade de fazer um filme sobre Madame Satã.

O Brasil tinha uma mania de celebrar alguns heróis e eu acho que ele é um dos grandes heróis brasileiros. Achava estranho não ter muitas produções sobre ele. Na verdade, só havia um filme da década de 1960 e mais nada. Nem literatura. 

Para mim, foi muito importante tentar encontrar em Madame Satã um símbolo de herói que nos faltava tanto para a comunidade queer quanto para a comunidade negra. E era importante não só como resistência, mas como exuberância da cultura brasileira.

Foi assim que o filme começou. A boate, a biografia e depois fiz muita pesquisa. Encontrei muita coisa, infelizmente, nos arquivos da polícia. Madame Satã foi preso muitas vezes.

O filme é quase como um ato de reparação história. Por que esse cara era tão conhecido nos anais criminais e não pela grande mídia? Madame Satã começa com a vontade de celebrar alguém que se tornou invisível e ao mesmo tempo é um dos grandes personagens da cultura brasileira.

CN: Como foi a reação do público com o lançamento de Madame Satã?

KA: Comecei a escrever o filme em 1994, foi filmado em 2001 e lançado em 2002. Foi um ato meio maluco. Eu não sabia como as pessoas reagiriam. É um filme explicitamente gay, com cenas de sexo. É um filme com protagonistas negro, em um bairro boêmio do Rio de Janeiro. Um filme de época. Eram tantas questões e aí eu preferia não ficar me perguntando. Só tinha vontade de fazer e lançar.

E acabou sendo curioso. Era uma história tão surpreendente para quem assistia e talvez tenha sido um dos meus filmes com maior público. Foram 200 mil expectadores quando a gente lançou Madame Satã. É um número muito grande.

Muita gente saiu do cinema. A gente foi atacado, mas não fisicamente. E acho que, apesar de ter sido um momento onde a homofobia era muito maior que a de hoje, existia também uma curiosidade. As pessoas foram assistir sem saber sobre o que era, só porque Madame Satã é um nome fascinante.

Foi muito interessante provocar o público. Principalmente porque Madame Satã de fato existiu. Isso dá certa legitimidade ao filme. É um filme histórico.

Foi um ato arriscado, mas é interessante ver o que a gente alcançou. Não foi um filme fácil de fazer. Demorou 8 anos para a gente terminar. Ninguém queria tocar no personagem, que apresenta uma série de tabus que duram até hoje. Naquele momento, esses assuntos não eram discutidos. 

Mas fizemos uma abertura muito boa. Apesar de ter sido muito duro, era bonito ver um público gigante no Brasil se reconhecendo naquele personagem. Foi muito poderoso.

Foto: Maria Lobo

CN: Houve diferença em relação ao lançamento de Praia do Futuro, em 2014? Toda arte é política?

KA: Total. Sem dúvida. Não tem como não ser. Ninguém aqui nasceu com o jogo ganho. Arte sempre foi um ato de contestação, um ato político. Todos esses filmes que citamos – e não só esses –, todos foram formas de discutir experiências, personagens e comunidades que são invisibilizadas. 

No Praia do Futuro, eu tinha um desejo grande de falar da comunidade LGBTQIAPN+ no Nordeste, e principalmente uma questão que a gente fala pouco, que é a diáspora da comunidade LGBTQIAPN+. Para a minha geração era “se correr o bicho pega, se ficar o bicho come”. A gente precisava sair dali. Ficar era muito perigoso. Ainda é muito perigoso, mas naquele momento era muito mais. 

Praia do Futuro fala muito da geração que precisou ir embora, que precisou desaparecer e virar outra pessoa em outro canto mundo para poder existir. Porque em sua cidade natal a sua existência era ameaçada o tempo inteiro. O filme vem do desejo de falar de uma geração diferente dessa atual. 

Antigamente, quando a gente ia embora, era muito caro voltar, era muito difícil regressar. Eram partidas de um caminho só. Praia do Futuro fala dessa época que termina nos anos 2000, que precisou ir embora e se reinventar para sobreviver.

O lançamento foi mais complicado do que o de Madame Satã. Madame Satã apresentava um personagem histórico, garantia legitimidade por ter existido. Não tinha como contestar aquele personagem. Podiam não gostar dele, mas ele era incontestável. 

Em Praia do Futuro, a gente não se deu conta de algo na época: o personagem principal, Donato, que estava indo embora do Brasil para poder viver a própria vida, foi interpretado por Wagner Moura, que tinha acabado de fazer um dos filmes mais vistos da história do cinema nacional, que é o Tropa de Elite. Acho que a gente fez uma confusão na cabeça do público, que pra mim é uma confusão muito interessante. Um ator pode fazer milhões de papéis. Quando rodamos o filme, não pensamos que isso geraria conflito.

Meu encontro com o Wagner começou em Madame Satã, porque ele é muito amigo do Lázaro Ramos. Pensei em chamar o Wagner para também atuar em Madame Satã, mas decidi que seria melhor não chamar, justamente pelo fato dos dois serem tão próximos. Mas fiquei querendo trabalhar com o Wagner. E quando aconteceu, não me toquei que era no mesmo período de Tropa de Elite.

Quando Praia do Futuro foi lançado, foi uma confusão. Tiveram dois ou três eventos muito barra pesada onde bilheteiros de cinema foram atacados fisicamente. Também teve gente querendo o dinheiro do ingresso de volta.

Não me arrepende em nenhum segundo de ter levantado essas questões. Claro que nunca é bom alguém ser atacado e não é disso que estou falando. Mas foi muito interessante ver as discussões que o filme levantou.

O personagem do Wagner Moura mexeu um pouco com o masculino, com o patriarcado. Foi muito complexo para o público. Foi um momento muito perigoso na vida de todo mundo. Foi o primeiro filme do Jesuíta Barbosa.

Várias coisas em Praia do Futuro foram surpreendentes. 

Um filme explicitamente sobre uma relação gay, diferente do caso de Madame Satã. Ente um filme e outro se passaram doze anos, então se supõe que as coisas tivessem mudado e as pessoas tivessem mais empoderadas, mas não foi o que aconteceu. 

O lançamento de Praia do Futuro foi em 2014, mais ou menos na mesma época que vimos surgir a ascensão do conservadorismo religioso. Teve ali uma fricção que foi muito dura.

CN: Qual é a sua relação com o Festival Mix Brasil?

KA: Acho que é uma coisa que muitas pessoas não sabem no Brasil. Na verdade, fui uma das pessoas que levou o Festival Mix para o Brasil, em 1993. Já tinha uma edição desse festival nos Estados Unidos, em Nova York. Eu morava lá e fui chamado para contribuir. Aí eu, Suzy Capó e André Fischer decidimos fazer uma versão brasileira. A primeira edição foi no MIS (Museu da Imagem e do Som), em São Paulo, e foi um dos eventos mais lindos que já vi no Brasil. Foi uma espécie de caminhada para a comunidade LGBTQIAPN+ através do audiovisual. Na verdade, é o primeiro festival LGBTQIAPN+ no Brasil. Foi muito legal. Tenho muito orgulho disso.

CN: As premiações são as experiências máximas que o cinema pode proporcionar?

KA: O máximo que o cinema pode proporcionar é público. Na verdade, nem é tão simples assim. Não é só sobre o número de espectadores. Claro que o número é muito importante, tanto no cinema quanto na televisão. A gente faz filme para ser visto.

O impacto de um filme pode ser muito forte. Por exemplo, quando a gente pensa sobre o que aconteceu com Praia do Futuro, é importante ver o que o cinema e a força do público podem. Eu só faço cinema porque acredito que o mundo fica um pouco melhor e que a vida das pessoas é transformada de forma positiva.

Mais importante do que os prêmios e o número de espectadores é quando você encontra alguém que diz: “Esse filme mudou a minha vida e me fez ter coragem de ser quem eu sou” ou “Esse filme me deu coragem de fazer algo que antes eu tinha medo de fazer”. É esse movimento que o filme causa na gente que é a coisa mais valiosa.

Os prêmios são uma espécie de validação da sua trajetória. Mais do que sobre um filme específico, eles são sobre a persistência de fazer cinema. Claro que são super relevantes, mas o mais importante é pensar que o filme vai causar um impacto e tornar o mundo um lugar melhor.

Foto: Loic Venance/AFP