
Anistiar o golpe é golpear o povo
A anistia que querem fazer tramitar é aberração.
De tempos em tempos, a história brasileira nos obriga a encarar um espelho cruel, que nos mostra pactos de poder que insistem em se repetir. Hoje, esse espelho é a minuta de projeto de anistia apresentada por aliados de Jair Bolsonaro. O que vemos nele é aterrador. A tentativa de transformar a traição à pátria em gesto político aceitável. E sabemos bem onde isso leva. Todas as vezes que uma tentativa de golpe não foi punida, ela voltou, mais tarde, como golpe consumado. É a lição amarga de 1937, de 1964 e de tantas outras páginas de ruptura.
A proposta é explícita, absolver crimes contra a democracia, apagar processos e penas já aplicadas, extinguir indenizações e multas. E, acima de tudo, devolver a Jair Bolsonaro o direito de ser candidato em 2026. Não se trata de gesto de reconciliação nacional. É a tentativa de reabilitar politicamente o golpismo, abrindo a porta para que o mesmo veneno circule outra vez em nossas veias democráticas.
Como podemos chamar de “lei” um texto que concede salvo-conduto a organizadores de ataques às instituições, financiadores de acampamentos golpistas, difusores de fake news eleitorais, articuladores de quarteladas? Como acreditar em democracia quando o Congresso discute premiar quem atentou contra ela?
A anistia que querem fazer tramitar é aberração. Porque não olha para presos pobres, para mulheres negras encarceradas por crimes sem violência, para jovens que amargam anos por furtar comida. Ela olha para cima, para quem sempre acreditou estar acima da lei. É anistia de classe, anistia de farda, anistia de gravata. E é por isso que precisamos falar sem meias palavras, anistiar o golpe é golpear o povo. O povo que resistiu nas urnas, que saiu às ruas para dizer “democracia sim, ditadura nunca mais”, que sabe o preço de cada retrocesso.
Não é o caso de discutir filigranas jurídicas para saber se essa proposta se sustenta na Constituição. O essencial é dizer em alto e bom som que ela é imoral. Porque uma anistia ampla e geral e irrestrita para golpistas não cabe em um país que segue enterrando corpos pretos e periféricos sem direito sequer a julgamento justo. Enquanto jovens são encarcerados por portar pequenas quantidades de drogas, enquanto mães choram filhos mortos em operações policiais que nunca chegam ao tribunal, alguns ousam debater o perdão a quem tentou rasgar a democracia inteira. É essa contradição que revela o caráter de classe e de cor da proposta, punição para os pobres e indulgência para os poderosos. Chamar isso de anistia é ofender a memória de quem tombou lutando por liberdade.
Se querem absolver Bolsonaro e seus aliados, que tentaram um golpe de Estado, precisam saber, nós não aceitaremos calados que transformem em lei aquilo que é golpe. Se tentarem empurrar a anistia pela porta da frente do Congresso, encontrarão resistência. Quem quer governar precisa ganhar no voto. Não passarão.