As disputas internacionais estão cada vez mais visíveis e intensas, tendo na guerra tarifária deflagrada pelos Estados Unidos um exemplo emblemático. Esses embates se entrelaçam e atribuem novos sentidos às articulações internacionais em curso.

O ímpeto sancionatório de Trump tinha como alvo principal a China, mas emperrou. A vigência das tarifas elevadas anunciadas para os produtos chineses tem sido postergada, pois a China pode retaliar cortando o fornecimento de chips, terras raras e outros insumos de que a economia americana depende.

Emperradas também estão as sanções contra a Rússia, que tinham data marcada e ignorada até a reunião desta sexta-feira (15/08), no Alaska, entre Putin e Trump. A Rússia já sofre sanções por conta da guerra na Ucrânia e é menos vulnerável a novas sanções. Rússia e China já dispõem de um pacto estratégico bilateral.

O pacto entre as duas potências já é grande o suficiente para atenuar os efeitos de sanções do Ocidente. Por exemplo, a China compra grande quantidade de petróleo russo, cujas exportações estão embargadas. E avança pelo sul da Rússia com a rota da seda.

BRICS

Foto: Joédson Alves | Agência Brasil

Com a articulação do BRICS entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul e recebendo a adesão de vários outros países, esse espaço de intercâmbio direto cresceu. Chegam a quase metade da população mundial. A complementaridade econômica entre eles já é maior do que no passado e deve crescer no futuro.

EUA e União Europeia pensaram que o BRICS não seria mais do que um palanque terceiro-mundista, dadas as notórias diferenças culturais, políticas e históricas. Porém, houve aumento nas trocas entre eles, inclusive após o tarifaço, e avança a construção de um sistema de pagamento comum (Pix do BRICS), que dispense o uso do dólar. Aí foi que o Trump se enfureceu e decidiu destruir o BRICS agora, e não depois.

Diante do impasse com a Rússia e a China, a estratégia dos EUA é botar pressão total sobre o Brasil, a Índia e a África. O resto são os pretextos, conforme o vale-tudo trumpiano: tarifas, Bolsonaros, ministros do STF, Mais Médicos, Pix, redes sociais. Trump tem a audácia de alegar direitos históricos sobre Fernando de Noronha e a base aérea de Natal.

Entre o BRICS, o Brasil é o país mais ocidental, embora esteja no hemisfério sul. Sofreu em regime de escravização e esteve sujeito, historicamente, às pressões do Reino Unido e dos EUA. Existem milhões de relações familiares entre brasileiros e europeus, ou norte-americanos. Existem milhões de brasileiros vivendo nos países ocidentais. A emergência da China como principal parceira comercial do Brasil é recente. Uma ruptura radical entre o BRICS e a OTAN tenderia a rachar o Brasil.

Ao Brasil não interessa constranger as relações comerciais e políticas com nenhum dos seus parceiros, incluídos os EUA. Trump é o promotor da discórdia, do desrespeito e do distanciamento, não apenas em relação ao Brasil, mas até com o Canadá.

UÉ…

Surpreendentemente, a União Europeia, ou Europa Ocidental, se diminuiu nesse debate. Ao que parece, optou por engolir o sapo das tarifas trumpianas, como se fossem um mal menor do que ser rifada pelos EUA na hipótese da Rússia avançar sobre a Europa. Os vacilos de Trump em relação à Ucrânia ativaram o alarme e agora os países europeus investem cada vez mais em tecnologias de defesa, tropas e armas.

O secretário geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Mark Rutte, verbalizou recentemente a paranoia europeia, dizendo que a Rússia se fortaleceu militarmente, chegando a superar a OTAN em aspectos específicos, e que essa circunstância constitui, por si só, uma ameaça ao ocidente e à democracia. Rutte não explicou como a Rússia teria conseguido essa superioridade em esforço de guerra na Ucrânia e sob sanções econômicas do Ocidente.

Rutte também disse que o BRICS não é apenas um parceiro comercial, mas geopolítico e defensor de uma multipolaridade de poder que destrói “o que nós construímos”. Rutte não falou da ditadorização dos EUA sob Trump, mas tentou incluir o Brasil numa rede de tiranias, que seria o BRICS.

Alguém precisa explicar a Rutte que o Brasil é um país latino-americano, que mantém relações normais com todos os seus vizinhos, é democrático, regido por uma Constituição, pluriétnico e multicultural. O Brasil respeita os tratados internacionais e a soberania dos estados nacionais, e participa ativamente das agendas multilaterais, como a relativa às mudanças climáticas globais. O Brasil não representa ameaça ao que Rutte construiu.

VEM COM A GENTE

Enquanto os EUA chantageiam e a OTAN discrimina o Brasil, os parceiros do BRICS se solidarizam. Conhecem o sabor das sanções unilaterais. Buscam comprar produtos brasileiros sobretaxados pelos EUA, como carne e café. Estão dispostos a investir em projetos de infraestrutura e em novas rotas comerciais.

Dias antes do encontro com Trump, Putin divulgou uma carta aberta ao presidente Lula e aos demais presidentes do BRICS apoiando a resistência às pressões do Ocidente, embrulhando EUA e UE no mesmo saco, da OTAN. As palavras de Putin têm notório sentido de urgência, como se uma grande guerra fosse iminente.

O presidente da China, Xi Jinping, divulgou uma extensa resposta à carta de Putin, incluindo mensagens direcionadas ao Brasil. Sua ênfase recai mais sobre as rotas comerciais do que sobre a urgência da guerra. Salvo engano, Xi não aborda a questão climática, reduzindo a agenda ambiental a aspectos protecionistas.

Tanto Xi quanto Putin sugerem de forma enfática que o Brasil rompa imediatamente com os EUA. Enquanto Putin amplia a crítica ao Ocidente, Xi se concentra nas rotas comerciais. Putin mencionou o Brasil durante o encontro com Trump, destacando os interesses de diversos setores da sociedade brasileira, incluindo os povos indígenas. Xi, por sua vez, afirma que a atuação de organizações que questionam obras de infraestrutura serve aos interesses americanos.

TRUMPFOBIA

O rompimento já existe, e não é momento para rompantes retóricos. Estão em vigor tarifas de 45% sobre a maior parte das exportações brasileiras para os EUA. Ministros do STF e familiares são alvo de sanções arbitrárias, funcionários públicos têm vistos americanos suspensos, e os presidentes do Senado e da Câmara sofrem pressões públicas. Trump não nomeou embaixador em Brasília, e a embaixadora do Brasil nos EUA permanece na capital brasileira.

Lula acerta ao se posicionar contra a intervenção absurda, sem minimizar a iniciativa unilateral de Trump. O Brasil não aplicou tarifas retaliatórias, que poderiam agravar ainda mais as relações comerciais com os EUA. O país não deseja que o conflito com Washington contamine os vínculos com a Europa ou outros parceiros. Pelo contrário, vê no tarifaço, que afeta a todos, um estímulo favorável à conclusão do acordo comercial entre a UE e o Mercosul.

O governo está adotando medidas necessárias no curto prazo, abrindo novos mercados para os produtos afetados pelas sanções e mantendo diálogo com os parceiros comerciais dos EUA. Há também atenção política em denunciar aqueles que atuam nos EUA para impor sanções contra o Brasil. Xi e Putin devem compreender que haverá eleições gerais em um ano e que qualquer medida de longo prazo dependerá da possível reeleição de Lula.

Até as eleições, é previsível uma escalada de pressões dos EUA para deslegitimar o processo e o resultado eleitoral, especialmente devido à ausência de Bolsonaro. Contudo, isso representaria um constrangimento adicional para outros possíveis candidatos da direita, que ficariam reduzidos à condição de laranjas e traíras.

ESCALADA

Trump tem falado em usar tropas norte-americanas para combater cartéis do narcotráfico que atuam na América do Sul. O primeiro a ser atacado, se supõe que através de uma flotilha naval, seria o “Cartel do Maduro”, na Venezuela. O Brasil poderia ser o segundo?

A alegação de Trump de que os EUA têm “direitos históricos” sobre o aeródromo de Fernando de Noronha e a base naval de Natal, construídos para uso americano durante a Segunda Guerra Mundial, é uma aberração. Não existe qualquer acordo da época que conceda tais direitos; os tratados previam apenas o uso temporário das bases.

Embora pareça absurdo, a loucura não falta aos extremistas, que, no entanto, não gostam de desperdiçar dinheiro. O excesso de submissão a Trump, entretanto, prejudica a direita nas eleições. Imaginem Tarcísio de Freitas defendendo que uma eventual invasão militar em Fernando de Noronha seria vantajosa para o Brasil.

É preciso manter a calma para administrar as pressões que vêm de várias frentes. Os presidentes dos poderes devem atuar de forma articulada. A política de Trump desagrada empresários e consumidores americanos, e muitos atos contra o Brasil podem ser contestados na Justiça. Há o risco de Trump se perder no labirinto de litígios que ele próprio produz.