Por Safira Ferreira

O curta de Nina Gantz tem gerado reações diversas nos espectadores, tanto por seu tom mórbido, assustador e até um pouco cômico, quanto por trabalhar de forma genial o (des)nostálgico, com uma animação singela. Além da narrativa em stop-motion, técnica já exigente em trabalho e paciência, o filme potencializa essa complexidade ao apresentar um cenário em decomposição. O início em live-action, com uma câmera antiga, adiciona leveza à linguagem visual.

“Não dá para contar uma história pesada como essa sem um pouco de leveza. Acho que isso também ajuda a atingir o espectador de forma mais forte – ou melhor, de uma maneira inesperada, o que é sempre interessante. É isso que acho fascinante quando assisto a filmes. As duas abordagens combinadas funcionam melhor para transmitir a mensagem”, comenta a diretora Nina Gantz, sobre o diálogo entre as estéticas opostas, em entrevista à revista online Skwigly.

O curta tem como premissa um programa de TV infantil gravado por Tio Gilly (Neil Salvage), aparentemente ambientado na década de 1980, em um porão que serve como estúdio improvisado. Gilly interage com três personagens que, inicialmente, lembram meros fantoches: Mary, Billybud e Fumbleton. Em um cenário lúdico, eles abordam um tema por episódio, incluindo números musicais e quebras da quarta parede.

Foto: Reprodução

Cheio de moscas ao redor e fadados à loucura, os fantoches, na verdade, são miniaturas de pessoas fantasiadas que agora aguardam seu fim em meio ao caos. No meio de um episódio, há um corte: Mary (dublada por Amanda Lawrence) começa a explicar a temática quando elementos não programados aparecem, como o zumbido de moscas e uma tensão em sua fala. Aos poucos, o cenário se desmonta, revelando a realidade sombria que os cerca. Sua tentativa falha quando Fumbleton (dublado por Toby Jones) aparece recitando Shakespeare sem sua fantasia, que, como a maioria dos elementos do programa, está se desfazendo – exceto pela câmera.

A situação fica nítida quando Mary aparece encostada nos pés rígidos de Tio Gilly, caído no chão, enquanto lê e rasga cartas de fãs para cobrir o mau cheiro do cadáver. Algo além dos objetos está em decomposição ali. Mary, a única mulher do trio, parece ser a mais sensível à situação, ainda impactada pela realidade, mas tenta continuar as gravações. Enquanto isso, Fumbleton assume uma nova personalidade para lidar com o presente, sem planos de reviver o passado, mas sim de sobreviver, mesmo sem calças. Billybud (dublado por Terence Dunn), por sua vez, calado, tenta se distrair com brincadeiras inventadas, mas carrega um olhar vazio de quem ainda se recorda do que já foi.

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Se o mau cheiro e a podridão não fossem suficientes, eles ainda lutam por comida. Em meio a picles e outros enlatados, a refeição diminui gradativamente, até cogitarem comer as próprias moscas – o que acaba não dando certo. Nada de novo acontece, e por muito tempo eles são condenados a viver o mesmo dia com menos mantimentos. Até que algo pior ocorre: Billybud, acidentalmente, começa um incêndio no cômodo, destruindo até mesmo a decomposição. Os três se salvam ao se protegerem em um antigo forno, mas o que antes os mantinha isolados do mundo agora está aberto, graças a uma fenda na parede deixada pelo fogo.

Além das moscas, pombos começam a visitá-los. Com medo de que suas vidas cheguem ao fim mais uma vez, Fumbleton assume sua personalidade aventureira e consegue salvar o dia. No entanto, talvez tenha sido uma reação infeliz – uma alusão ao mito da caverna de Platão –, pois, ao descobrirem que há vida fora das câmeras, eles percebem que jamais viverão de verdade, apenas sobreviverão.

“Rosie Tonkin, nossa maravilhosa designer de cenário, comprou o pombo online. Você pode comprar pombos taxidermizados de verdade, embora ele tivesse que ter um certificado afirmando que morreu de causas naturais. Ela o esvaziou para colocar um equipamento de arame nele. Também refez os pés, que precisavam se mover. Ela fez um trabalho incrível, mas era estranho trabalhar com ele! Consideramos várias maneiras de fazê-lo, incluindo usar um pombo vivo, mas acabamos optando por essa solução. Um verdadeiro estilo Jan Švankmajer!”, explica Nina.

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Essa mistura entre horror, sujeira, humor ácido e animação leve cria um paradoxo encantador. A história é protagonizada por personagens problemáticos e tolos, que, em sua inquietação, repetem o que não dá certo e sequer entendem o que significa sobreviver. O caos coletivo é mais resultado de suas ações do que das circunstâncias, o que torna a narrativa cômica, mesmo com o tom mórbido.

Nina conclui: “Eu vejo um filme mais longo nele. Não o fiz como uma prova de conceito, mas, nesses oito anos de produção, trabalhei tanto no desenvolvimento dos personagens e em todas as diferentes versões que tinha desse filme que sinto que há mais para explorar. Não estou dizendo que ele será exatamente o mesmo, mas o mundo desse filme ainda me intriga. Não tive isso com Edmond, por exemplo; aquela foi uma história legal do começo ao fim e parecia concluída. Mas com este, sinto que há possibilidades.”

O curta, lançado em 2023, foi vencedor do Prêmio BAFTA de Cinema, Golden Calf, British Independent e Annie Award, todos na categoria de Melhor Curta-Metragem Animado. Além disso, foi indicado ao Oscar na mesma categoria, ao lado dos curtas Yuck!, Magic Candies, Beautiful Man e In the Shadow of the Cypress.