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Histórias de perdas e revoltas: Um paralelo entre ‘Ainda Estou Aqui’ e o crime da Braskem
As semelhanças entre crimes que impactaram diversas famílias brasileiras e ainda seguem sem respostas para as vítimas.
Por Teresa Cristina
No dia em que fui assistir Ainda Estou Aqui, sabia que seria um filme que iria me marcar, emocionar e me fazer relembrar vários fatos. O que eu não esperava era que seriam fatos dos quais pude vivenciar tão de perto.
A casa da família Paiva é mostrada como um ambiente acolhedor, cheio de memórias e de uma rotina prazerosa de ser vivida. Parecida com a casa dos meus avós maternos, localizada no bairro do Farol, em Maceió. Assim como os personagens do filme, meus avós estavam há anos naquela casa, criaram três filhos e, anos depois, também recebiam os netos diariamente.
Quando Rubens é preso, a casa da família Paiva se transforma, parece perder o encanto e o acolhimento de antes. As crianças, que não entendiam exatamente o que estava acontecendo naquele momento, sabiam que aquela situação não era normal. Como na casa dos meus avós, que ficava entre as áreas afetadas, e desde que as primeiras rachaduras apareceram no Pinheiro, em 2018, o bairro foi ficando cada vez mais vazio e só piorou com a pandemia, até que chegou a um ponto em que já não era seguro para dois idosos permanecerem ali.
As coisas começam a ficar cada vez mais complicadas para a família Paiva, e Eunice decide vender a casa e se mudar para São Paulo. Os filhos não queriam deixar a casa, mas era necessário. A casa dos meus avós também foi colocada à venda, e, assim como no filme, essa não era bem a vontade deles, mas uma necessidade. Assim como meus amigos, moradores do Pinheiro, que precisaram deixar suas casas em até trinta dias, porque receberam um aviso de que estavam em área de risco, deixando para trás os momentos ali vividos, memórias e o acolhimento de lugares que foram suas moradias por décadas.
A cena em que todos estão no carro foi muito emocionante. Nenhum dos personagens disse uma palavra, mas suas expressões demonstravam todo o turbilhão de sentimentos ali. Parecido com meu avô, que permaneceu calado durante o processo de mudança, enquanto eu, meus primos e minha irmã estávamos embalando alguns pertences e relembrando de quando ligavmos para a nossa avó para perguntar se algum dos nossos amigos de colégio poderia almoçar lá, de como aquela casa foi ponto de encontro de diversos trabalhos escolares, de quando discutíamos de quem era a vez de assistir desenho na televisão que meus avós tinham comprado para nós, das diversas vezes que dormimos lá, dos lanches que meus avós sempre incluíam na feira do mês para agradar os netos e da nossa rotina naquela casa. Meu avô observava tudo e, assim como Eunice, o silêncio dele falava muito alto.
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Foi então que decidi gravar um vídeo da casa. Precisava ter esse registro do lugar que foi minha casa por tanto tempo. Gravei todos os cômodos, as pessoas que estavam lá, mas até hoje não tive coragem de assistir. Tenho saudades daquele lugar, daquela vida, mas tudo ainda é uma ferida aberta. No caminho da escola, eu passava pelo Pinheiro todos os dias, via casas de amigos, padarias, praças históricas e estabelecimentos dos quais éramos fregueses. Hoje, quando refaço esse caminho, só vejo vastos terrenos com destroços de demolição e vários tapumes brancos, e ainda assim consigo dizer exatamente onde ficava cada lugar daquele bairro.
São dores diferentes, mas com algo em comum: os crimes e a ambição dos causadores. No filme, a família sofre por um regime desumano que destruiu diversas famílias apenas para mostrar sua autoridade, controle e soberania. Em Maceió, milhares de famílias ficaram sem suas casas, sem seus estabelecimentos, com uma indenização baixa ou até sem ela, pela ganância de uma empresa que escavou a cidade de maneira brutal.
Ainda hoje, muitas famílias de vítimas da ditadura não sabem o que aconteceu com seus entes queridos e aguardam por uma resposta, assim como diversas famílias vítimas da empresa não receberam sua indenização, mesmo tendo que deixar tudo para trás de um dia para o outro. Há pessoas que ignoram a ditadura como uma forma de apagar o passado, as histórias das pessoas que sofreram com ela e ocultar a falta de respostas que permanece até hoje. Tentando demolir esses anos de história do Brasil, assim como foram demolidas as casas de cinco bairros de Maceió.
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A memória da ditadura permanece viva nas pessoas que passaram por ela, em museus, livros e em obras audiovisuais como o filme de Walter Salles. Da mesma forma, as memórias dos bairros (Pinheiro, Bebedouro, Mutange, Bom Parto e Farol) e as injustiças seguem na memória dos maceioenses para dizer que ainda estamos aqui e que os crimes não serão esquecidos, nem a nossa história será apagada.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.