Os extremistas estão na sala de jantar

O filme Ainda Estou Aqui nos lembra que precisamos de um Manual da Guerrilha Afetiva para restituir um tecido social esgarçado e polarizado. Podemos imaginar Eunice Paiva diante dos golpistas do 8 de janeiro? 

Enquanto o filme Ainda Estou Aqui estava sendo exibido nos cinemas de todo o Brasil em novembro de 2024, um extremista de direita, vestido de roupa com naipes de baralho como do personagem Coringa se autoexplodia com uma bomba e artefatos destinados a destruir a estátua da Justiça e o prédio do STF em Brasília.

Nesse dia, fiquei me perguntando quantos outros “coringas” temos em gestação hoje no Brasil, arquitetando planos antidemocráticos factíveis ou risíveis, ou ainda quais as condições políticas para “surtos” coletivos, organizados e planejados, como os do 8 de janeiro de 2023, quando partidários do ex-presidente Bolsonaro, derrotado nas eleições de 2022, invadiram e vandalizaram o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) em uma tentativa de golpe de Estado.

Vendo o filme de Walter Salles_ que acaba de dar a atriz Fernanda Torres, o Globo de Ouro, por sua atuação magistral como Eunice Paiva, a viúva do ex-deputado Rubens Paiva,_ preso,  torturado e assassinado pelos militares em 1971_ fiquei me perguntando como o golpe militar de 1964 e também os acontecimentos do período sanguinário do governo Médici, puderam ser reapropriados e ressignificados pelos “coringas”, pelos bolsonaristas, pelos extremistas, por parlamentares de direita no Congresso. Como a apologia a regimes de exceção foram “normalizados”?

Dos tanques militares ao golpe instagramável

Fato é que “cidadãos de bem” naturalizaram um regime de morte, de violação de direitos, de intervenção militar e buscaram reeditá-lo em uma tentativa de golpe militar que culminou com o 8 de janeiro de 2023.

38 anos depois do fim de uma ditadura militar que atuou “nas sombras”, nos porões, nos desaparecimentos, um regime de obscuridade que deixou sequelas profundas na história do Brasil _ uma nova tentativa de golpe foi filmada e postada nas redes sociais por milhares de pessoas em tempo real, de forma midiática e explicita, a luz do dia, histriônica, de forma instagramável e exibicionista, com a participação de militares, empresários e pessoas comuns.

A tentativa de reedição midiática de um golpe por intervenção militar em 2023 tinha um lastro. De todos os países assolados por ditaduras militares nos anos 70, Paraguai, Bolívia, Chile, Uruguai, Argentina, o Brasil foi o que menos investigou, julgou e puniu os crimes da ditadura. A Argentina, ainda em 1983, criou sua Comissão Nacional sobre os Desaparecidos durame o regime, de 76 a 83, investigou crimes, prendeu generais e condenou mais de mil pessoas por crime de terrorismo de Estado.

Aqui tivemos a Comissão Nacional da Verdade, que trouxe a luz 1121 depoimentos impressionantes e chocantes. Fotos e documentos reveladores de acusados e vítimas da ditadura. O relatório final foi entregue a então presidente da república Dilma Roussef em 2014, ela mesma torturada pelos militares, mas, apesar do trabalho primoroso nossa “justiça de transição” não puniu ninguém.

Por isso o golpismo instagramável e espetacular de 8 de janeiro de 2023 precisa de uma punição pedagógica e rigorosa, que começou com a condenação pelo STF de 371 pessoas, mais de 2 mil investigadas, 146 condenadas por incitação e associação criminosa, e 527 liberadas mediante pagamento de multas. Uma inédita reversão da tradição de impunidade e conciliação. 

O 8 de janeiro provou como se passa da narrativa aos atos, dos memes e fake news para uma ação real e violenta que começa com incitações nas redes sociais e uma minuta de golpe de estado, impressa no Palácio do Planalto envolvendo generais, coronéis e o alto escalão das Forças Armadas no final do governo Bolsonaro.

O episódio questiona a ideia de uma “liberdade de expressão” que legitime a incitação a crimes ou a apologia à violação do estado de direito, assim como outras “liberdades” criminosas.

A minuta golpista, elaborada com a participação do então presidente da República, Jair Bolsonaro, invoca a Constituição de 88, a constituição mais radicalmente democrática, para propor um golpe de Estado no Brasil, diante da derrota de Bolsonaro nas urnas em 2022:

“Afinal, diante de todo o exposto e para assegurar a necessária restauração do Estado Democrático de Direito no Brasil, jogando de forma incondicional dentro das quatro linhas, com base em disposições expressas da Constituição Federal de 1988, declaro o Estado de Sítio; e, como ato contínuo, decreto Operação de Garantia da Lei e da Ordem.” (Minuta do Golpe, publicada nas 884 páginas de investigação da Polícia Federal em 21/11/2024)

Em nome da Constituição, os militares propõem violarem a Constituição! Eis o que diz a espantosa minuta.

Foto: Joédson Alves/Agência Brasil

Inversões do Sentido

As inversões da extrema-direita são assombrosas, mas como é possível mudar o sentido da história? Quantos brasileiros sabem o que de fato foi a ditadura militar no Brasil?

Em parte da minha adolescência em Rio Branco no Acre nos anos 70, nunca ouvi a palavra “ditadura” na minha casa, na minha escola, na vizinhança. Nunca soube que havia tido um golpe militar, que se praticava tortura e que haviam desaparecidos políticos, repressão e censura no Brasil. 

Só em 1984, já na graduação em comunicação na UFRJ soube que o Brasil tinha sofrido um golpe militar em 1964, com os protestos pelas Diretas Já, primeira manifestação politica que fui na vida.  Eu era a exceção alienada vinda das bordas do Brasil? Temo que não. 

Com a ascensão da extrema-direita no Brasil, a própria palavra “ditadura” muda de endereço, antes mesmo que a história do Golpe de 64 se consolidasse. Ao invés de estar indexada a ditadura militar, a palavra passou a ser utilizada para designar uma suposta “ditadura globalista”, “ditadura do STF”, “ditadura petista”, “ditadura gayzista” ou “ditadura da mídia”.

“A esquerda grita ‘ditadura nunca mais’ e comemora Globo de Ouro, mas ignoram a ditadura que vivemos”, leio em um grupo direitista que monitoro no Telegram ao mesmo tempo que as janelas de Copacabana gritavam o nome de Fernanda Torres celebrando o prêmio inédito no dia 05 de janeiro de 2025. 

A inversão dos sinais, a falsificação da história, a apropriação das palavras, cria sentimentos de “resistência” e de “luta” contra seus “algozes”, e extrema-direita usa a mesma linguagem, as mesmas palavras, as mesmas estratégias narrativas, semióticas, emocionais usadas para denunciar a ditadura militar de 64.

Nas redes da família Bolsonaro os “presos políticos” são os próprios golpistas:  “Estamos falando sobre Justiça, sobre pacificar o país. Os presos do 8 de janeiro são presos políticos e nós não vamos desistir deles. Todos os dias estamos lutando por eles! (Flávio Bolsonaro, 19/11/2024 no Telegram). Citam também o jornalista Allan dos Santos,  como “censurado” e o ex-deputado Daniel Silveira, “preso injustamente”,  como “vítimas da ditadura atual”.

O afeto antidemocrático é uma “cola” poderosa

A extrema-direita vem se apropriando de todas as palavras de ordem e da linguagem ativista das esquerdas. Hackearam o humor memético,  o sentimento de rebeldia, a ideia de revolução, a linguagem dos protestos, ocupações, acampas, a definição de “liberdade de expressão”, a ideia de “resistência”, de “presos políticos”, “governo do povo”, etc.

Os extremistas chegaram a uma sui generis definição antidemocrática  de “democracia”, em que o povo autoriza a própria abolição violenta do Estado de direito. Autoriza golpes, intervenção militar, autoriza, em nome da democracia, a destruir a democracia.

Não são discursos políticos racionais que movem essas inversões e ressignificações de sentido. Tudo isso vêm antes de qualquer entendimento ideológico, como temos visto nos comportamentos de grupos, no que viraliza e enxameia nas redes sociais, no que engaja nos grupos e multiversos extremistas, dentro e fora do Brasil.  

O afeto antidemocrático é uma “cola” poderosa, porque tem base moral, é da vida que a extrema direita fala, uma vida atravessada por afetos tristes, ressentimentos e morte, mas uma construção que autoriza praticamente qualquer coisa.

O pânico moral mobiliza grupos inteiros assombrados por uma delirante doutrinação LGBTQ+ nas escolas; pelo medo da cultura e das artes como vetores de “perversões” de toda sorte; que demoniza artistas, intelectuais, professores, cientistas, ativistas como vetores de movimentos progressistas e emancipatórios como o feminismo, o antirracismo, o ambientalismo e tudo que coloque em xeque a mentalidade patriarcal e predatória.

O mundo contemporâneo é visto como caos e ameaça afetiva e efetiva, ameaça comportamental, ameaça e destruição dos valores da família. Eis a força da extrema direita no mundo: A defesa da família idílica patriarcal, base de milhares de filmes e narrativas hollywoodianas e mitologias.

Ainda estamos Aqui. Contra polarizações, a força arquetípica da família? 

O que o filme “Ainda estou aqui” faz, como narrativa, e o que o livro de Marcelo Rubens Paiva já indicava, é exatamente usar essa força arquetípica da família e da mulher (sim brancas, sim abastadas, sim, normativas) para colocar Eunice Paiva, a mãe de 5 filhos, a viúva arrancada de uma ideia feliz de família amorosa e jogá-la no inferno com coragem e pragmatismo assertivo.

Eunice é despida de alguns dos seus privilégios de classe e colocada diante de um Estado carrasco que costuma direcionar sua crueldade e violência contra os pobres, contra os pretos, contra os favelados. Mas aqui, é a família normativa que deixa de ser intocável.  “Meu marido está em perigo”, diz Eunice. “Todo mundo está em perigo”, responde a amiga a quem ela pede ajuda.

No filme, Walter Salles mostra sua destreza narrativa, ao apresentar e nos envolver com essa família abastada,  progressista, branca, desejável e feliz que será violentada pelo Estado brasileiro.  Eis a identificação e cola “universal” de Eunice com qualquer espectador, o trauma político não diz respeito apenas a uma ruptura da ordem social ou a uma disputa ideológica, é o ataque a uma família.

Foto: Divulgação

O filme traz uma equação afetiva poderosa, a mãe que protege e luta pela memória do marido assassinado e a sobrevivência dos filhos diante de um Estado criminoso. Poderia ser a mulher de Amarildo, poderia ser a mãe da menina Ágatha, poderiam ser milhares de histórias anônimas que ainda não foram contadas em que a família é ameaçada e destroçada subjetivamente e/ou materialmente pela violência do Estado.

Precisamos de mil Eunices de todos os grupos e classes sociais para comover o Brasil da insanidade que é a violência do Estado contra a sociedade.

Ainda Estou Aqui tende, narrativamente, a dissolver ou amenizar as polarizações políticas já arraigadas, no Brasil de 2024, pelos afetos em cena e pelo seu humanismo centrado na família? O filme indica um caminho possível, um capítulo no manual da guerrilha afetiva que teremos que travar em 2026 e depois.  

É possível construir “redes cordiais”, espaços de convivência e diálogo, firmar pactos democráticos diante do engajamento nas redes tóxicas, diante do negócio do ódio, do gozo com a brutalidade e violência das polarizações?

Não há saídas que não sejam coletivas ou que não passem por políticas públicas, mudanças de mentalidade, justiça efetiva, mas o filme ganha potência nesse  microcosmo, na escala reduzida da família, na reconstrução da história pessoal de Eunice Paiva, que nos leva a nos solidarizarmos_ para além de sofrermos com ela e com sua família adorável_ com os demais vitimados pela macro história da ditadura militar no Brasil.

É por identificação, analogia. projeção, ou por constrangimento humanista (no caso de um espectador conservador) que o filme nos instala nesse devir resistente de Eunice diante de um Estado criminoso. Quem pôde e quem pode peitar o terrorismo de Estado, seus agentes, sua polícia, seu descontrole?

O filme cuida em defender e afastar Rubens Paiva de qualquer simpatia pela luta armada ou qualquer gesto ou discurso radical. Paiva foi deputado federal eleito e cassado em 1964, fez um discurso histórico na Rádio Nacional, em defesa da legalidade do presidente João Goulart no dia 1º de abril de 1964.

Com o golpe em pleno andamento. Paiva é cassado, sai do Brasil, volta para se dedicar as suas obras como engenheiro, mas não deixa de atuar contra a ditadura, como “correio” entre os exilados políticos, fazendo chegar informações para a imprensa internacional sobre a ditadura no Brasil, ajudando perseguidos políticos escaparem do país. Paga seu ativismo com a vida: é preso, torturado e morto em 1971.

Nada disso é dito, o  Rubens Paiva (Selton Mello) do filme é sobretudo o pai bonachão e amoroso, o marido de Eunice Paiva, a mãe liberal e dedicada.  Os dois formam um casal bom vivant que cria os 5 filhos entre festas com os amigos, banhos de mar no Leblon, uma casa confortável e espaçosa e os ares libertários da contracultura. Embalados pelas músicas de Gil, Cetano, Mutantes, Serge Gainsbourg, pelos livros, pela arte, pela boa comida, pelo bom viver.

Essa amorosidade e humanização dos personagens quebra os clichês da extrema-direita ou de conservadores sobre os “subversivos”, os guerrilheiros terroristas, os estudantes radicais que lutaram contra a ditadura. Pais e filhos da família Rubens Paiva são primordialmente uma família brasileira feliz

Nos 30 minutos iniciais, a família de Rubens Paiva é retratada com imagens de intensa vivacidade e frescor, usando a estética fragmentada e amadora do super-8, como as da câmera usada pela filha “Veroca”, crônicas e diários audiovisuais de verões, viagens e festas,  e também as inúmeras imagens de uma caixa/álbum  transbordante de memórias felizes.

A sequência das meninas dançando ao som de Je t’aime , moi non plus, de Gainsbourg e Jane Birkin; Eunice e Rubens Paiva rodopiando com os filhos ao som de Take me Back to Piaui, de Juca Chaves, são tocantes e vibrantes. Quem ousaria atentar contra tal felicidade?

Foto: Divulgação

A Vida das Imagens. O super-8 e o álbum de família

Na contramão das análises moralistas demais sobre o narcisismo e a felicidade postada nas redes sociais, hoje, vejo a ostentação das micro e macro felicidades cotidianas nas plataformas como a continuidade das fotos analógicas dos álbuns de família, uma espécie de imagerie delirante que é um escudo contra o caos, escudo contra o sofrimento infinito do mundo.

Walter Salles usa todo o poder das imagens amadoras e domésticas em Ainda Estou Aqui: filmagens e projeções de super-8, “filmes-cartas”  da filha adolescente em Londres, a câmera analógica Pentax  nas mãos do pai, as caixas abarrotadas de fotografias da mãe, a presença das câmeras de filmar e fotografar em casa, na rua, na praia, no carro, as fotografias nas páginas de jornais. 

Somos imersos em uma iconografia familiar que já é a memória do presente, o que fica com o desaparecimento de Rubens Paiva são suas imagens. Nós seremos apenas imagens, um dia. Eis nossa mais provável forma de ressureição.

A Casa como Microcosmo 

A ditadura militar no filme vai aparecendo (como em um filme de detetive ou de terror) por pequenos indícios: sons de helicópteros sob o mar, carros militares atravessando as ruas da orla do Leblon, uma blitz no túnel Rebouças,  notícias na TV do sequestro do embaixador suiço, ruídos distantes  e aparentemente incapazes de alterar o cotidiano solar, festivo, confortável que embala essa família da classe alta em seu casarão a beira-mar.

Mas o que está lá fora vai adentrar a casa e mudar tudo.  A destreza de Fernanda Torres, em sua atuação precisa e magnânima, contida e tensa, é mostrar essa mulher arrancada desse meio e se despindo de uma vida, tentando “blindar” os filhos de tudo que acontecia.

A casa viva é um dos personagens eloquentes da narrativa e vai morrendo, com cortinas sendo fechadas, tomada de assalto pelos agentes que levam Rubens Paiva para sempre e se instalam na casa. Portas fechadas, vozes baixas, e uma falsa normalidade da mãe diante dos filhos que ignoram o que está acontecendo. 

O tratamento diferenciado que os agentes militares dão a família de classe alta, chama atenção. São pobres no casarão de ricos, jantam e jogam totó, bem diferente do pé na porta e do abuso de autoridade instituído nas favelas.

As iniquidades da ditadura e da prisão são compartilhadas apenas por Eunice e uma das filhas, Eliana, de apenas 15 anos, as duas levadas ao DOI-Codi e interrogadas.

 A adolescente, encapuzada, atordoada, ficou presa por 24 horas. Eunice Paiva por 12 dias no DOI-Codi da Tijuca, aqui no Rio de Janeiro, no maior centro de tortura da América Latina. Rubens Paiva, preso em 20 de janeiro, dia de São Sebastião, foi interrogado, torturado e executado na noite de 21 para 22 de janeiro de 1971.

Mas nada disso está no filme, sem datas ou detalhes, a experiência que temos é de Eunice, desorientada, jogada de uma cela para outra, interrogada, ouvindo os gritos de torturados, vendo manchas de sangue no chão, perguntando em desespero pela filha de 15 anos e pelo marido. 

A sequência se encerra quando Eunice é libertada e volta para casa e se lava no banheiro esfregando cada pedaço de pele como se quisesse arrancar do corpo a memória, os cheiros e sons dessa temporada no inferno.

Mas o terror que se instaura na casa é algo igualmente apavorante que transforma Eunice, de mulher refinada, bem servida, bem casada, em uma mãe aterrorizada pelo Estado que tem que dispensar a empregada doméstica, vender a casa a beira mar, criar 5 filhos, voltar a estudar e recomeçar a vida em outra cidade.

Uma transformação que vai sendo sentida pelos filhos e pelo espectador como em um filme de terror ou de assombração que vai deixando pistas, evidências fragmentadas, criando uma narrativa sufocante. As perdas afetivas na família, o desaparecimento do pai, vão sendo acompanhadas dessas perdas materiais.  

Um dos maiores medos universais, seja da classe média, seja da elite econômica, seja entre os mais pobres não é justamente despencar na escala social?  Para os que tem, muito ou pouco, perder o provedor, perder a casa, o salário, o emprego, as redes de apoio, é traumático.

Foto: Divulgação

Enterrar o pai

Narrativamente, os dois momentos mais simbólicos e apavorantes do filme são, cinematograficamente, o enterro do cãozinho de estimação da família de Eunice, atropelado, acidentalmente ou propositadamente, enquanto a casa é vigiada por agentes militares.

As mãos das crianças e da mãe que cavam freneticamente um buraco no quintal e enterram o corpo embrulhado de Pimpão em um cobertor, sua morte violenta e atroz, é praticamente o enterro simbólico e impossível do pai, prenúncio e presságio da sua morte arbitrária e violenta. Uma catarse familiar aterradora.

Outra cena despedaçante é a saída do casarão da família, os cômodos vazios, os restos de mudanças, o inconformismo dos filhos deixando o paraíso: o Rio, a praia, a infância, a adolescência, os amigos, com o pai desaparecido. Qualquer pessoa na plateia sente o amargor e melancolia da cena:  mudar de cidade de maneira forçada ou por circunstâncias desfavoráveis da vida.

Mais uma vez, um sentimento universal, um luto cotidiano vivido por todos os que partem, migram, fogem, mudam para garantir sua sobrevivência. Mais uma vez a micro história familiar traduz um misto de sentimentos contraditórios: adeus e vida nova.

A Vida se Ajeita

Toda a terceira parte do filme, depois do paraíso perdido e do inferno é de paulatina normalidade, 25 anos depois a vida se ajeita. Do mar e do sentimento oceânico do Leblon para as águas azulejadas de uma piscina no clube paulista, eis a vida se reorganizando como pode.

Eunice se torna advogada e ativista da causa indígena, a história dos povos indígenas expropriados de suas terras e dizimados durante a ditadura militar ainda não foi contada; o filho Marcelo Rubens Paiva torna-se escritor. Li Feliz Ano Velho, em 1982, a história do seu mergulho fatal que o deixa tetraplégico, vibrando com seu humor e ironia, sem atentar que descrevia o contexto político pós-ditadura militar.  

Além do filho escritor, as filhas de Eunice já estão adultas. Ela mergulha no trabalho, nos documentos, coleciona tudo que sai sobre o desaparecimento do marido, batalha  e recebe, em 1996,  26 anos depois, o atestado de óbito do Estado brasileiro que reconhece que Rubens Paiva está morto. Tudo é mais “leve” e factual nessa última parte do filme.

Eunice posa sorridente com o atestado de óbito de Rubens Paiva, porque trata-se de uma vitória pessoal e coletiva gigante, conseguida não só por sua resiliência e estoicismo, mas por meio da Lei dos Mortos e Desaparecidos, uma política pública.

Lei que foi sancionada em 1995, reconfortou famílias dos mortos pela ditadura, mas foi extinta em 2022 pelo governo de Bolsonaro e só retomada pelo presidente Lula, em 2024. Uma reparação no campo da memória, as certidões de óbito, mas não no campo da justiça, pois não se puniram os criminosos.

Toda a interpretação extraordinária de Fernanda Torres tem como base o autocontrole perturbador de Eunice, capaz  de “blindar”, em um primeiro momento, a família e os filhos da violência do regime militar. Mas não se trata obviamente de um simples e inabalável senso de autoestima individual admirável, mas uma noção clara de seus direitos, e a percepção de sua mobilidade social.

Se Eunice silencia sobre a ditadura dentro de casa, ao final do filme e da vida, nada mais é tabu, a História e as histórias voltam a circular nos almoços familiares e reencontros cotidianos, porque o Brasil já podia falar da ditadura, era a abertura política. A memória e a história são liberadas aos poucos.

Eunice _ ao lado de outros familiares de desaparecidos e mortos de 64, com apoio de organizações, instituições do próprio Estado, órgãos internacionais de defesa dos direitos humanos _ reestabelece a verdade histórica sobre o desaparecimento, tortura e assassinato de Rubens Paiva pelo regime militar. Mas, paradoxalmente, o Alzheimer apaga sua memória pessoal  é o que vemos no semblante alheado de Fernanda Montenegro (Eunice velha) ou levemente sorridente

Não está no filme, mas é  a própria Eunice, segundo relata Marcelo Rubens Paiva, que pediu sua interdição judicial diante do Alzheimer,  como boa advogada que era.  Só o coletivo nos salva, literalmente, desse apagamento final da memória individual.

Extracampo: onde estavam os pobres?

Nas redes de extrema direita e os que fazem apologia do estado de exceção, dão a entender que a ditadura militar de 64 manteve “tudo normal” exceto para os que foram presos, assassinados, torturados, exilados, artistas, jornalistas, políticos estudantes, os “comunistas”, “subversivos”, cabeludos, “bicho grilos”, as camadas médias urbanas intelectualizadas, sindicalizadas, politizadas.

O mesmo discurso do golpismo de 2024 e do populismo de extrema-direita que fala de uma elite cultural corrompida em oposição “ao povo”.  

Em uma postagem no grupo de Telegram  de Bolsonaro se lê:  “as turmas do Leblon, da Vila Madalena, das redações perfumadas, et caterva, bebem vinhos gourmet e comem queijos caros enquanto debatem o quão chique e engajadE é o cinema brasileiro e planejam a próxima viagem a Nova York – isto porquê Havana só é boa nas histórias socialistas da carochinha de mesa de bar. O quê importa é que o “amor venceu”. (Publicação de 13/12/2024. Telegram de  Jair M. Bolsonaro 1).

Em Ainda estou aqui, Zezé, a empregada negra da família Paiva (Pri Helena), é a testemunha leal e silenciosa da história familiar, a empregada doméstica que mora na casa e cuida dos filhos de Eunice quando ela é levada para o Doi-Codi.

Se Eunice Paiva, para proteger a família e recomeçar a vida sem o marido, pode vender o casarão, pode pegar dinheiro no banco, pode mudar do Rio para São Paulo e manter certo padrão de vida, a empregada Zezé tem que ser dispensada e fica desempregada. Não se sabe seu destino na narrativa, mas sabemos o quanto a ditadura militar agravou a vida dos mais pobres.

O imaginário em torno do “Milagre Econômico” , do “Brasil Grande”, do “Brasil, ame-o ou deixe-o” ainda perdura como memória pública e popular da ditadura militar de 64?

Parece que sim! Pouco se fala de quanto a ditadura agravou a vida dos brasileiros comuns e pobres, produziu um êxodo da população rural desassistida para as cidades e favelas, abortou agendas sistêmicas, como a da Reforma Agrária, agravou o trabalho injusto no campo, agravou e tentou esconder a fome endêmica no Nordeste, dizimou grupos indígenas e tomou suas terras.

A capa da Revista IstoÉ de outubro de 1985 fala da “Fome Censurada” pela ditadura. A imagem traz uma criança pobre, nua, segurando um rato.  Os dados são de um estudo sobre a fome no Brasil do IBGE. O Censo de 1970 já trazia dados alarmantes e produziram forte debate nacional e incomodaram a ditadura ao revelar os níveis de desigualdade de renda do país. [3]

O presidente militar do período mais sanguinário da ditadura, Garrastazu Médici, que em Ainda Estou Aqui aparece apenas em um retrato na parede, declara em 1974: “O Brasil vai bem, o povo vai mal”. O milagre econômico ia se desfazendo com os dados sobre a distribuição desigual de renda, problema de emprego, precariedade das moradias, do saneamento, da educação

O Brasil de Médici que ia bem era o da economia narrativa, a justificativa da ditadura militar para afastar o pânico moral e alimentar os fantasmas que reaparecem com a turba justiceira de 8 de janeiro de 2023.

Há uma narrativa moral compensatória em todos os regimes de exceção. O filme Ainda Estou Aqui é o filme dos resilientes, dos familiares dos mortos e desaparecidos, das Eunices de todos os grupos sociais que se dão conta de seus direitos. Mas, quase fora de cena, já vislumbramos os extremistas que jantam conosco e jogam totó com as crianças. Hoje eles estão nas redes sociais, como os cidadãos de bem disseminando fake news ou fazendo circular discursos de ódio.

Micropolítica

O humanismo de Ainda Estou Aqui é um alento, mas como poderemos restituir um tecido social esgarçado, quando os extremistas se instalaram na sala de jantar e na própria família normativa?

Podemos imaginar Eunice Paiva tendo que conversar com os apologistas da ditadura, a histórica e a midiática do 8 de janeiro, escutar na academia (de ginástica, por enquanto) ou ler nas redes sociais os discursos de ódio contra o STF, discursos sexistas, racistas, homofóbicos.  

Nas redes extremistas que monitoro e pesquiso uma das mais recorrentes formas de deboche é do “governo do amor”. A disputa afetiva na política impacta e incomoda. A amorosidade e afetividade de Lula produzem um efeito político e um círculo virtuoso que o odioativismo tem que combater. 

Depois do hackeamento e malversação das palavras de ordem das esquerdas, a extrema-direita bombardeia o humanismo (“pobre não come amor”), os direitos humanos, como uma fraqueza.

As vidas-linguagens, a singularidade que humaniza, a micro história proposta por Ginzburg, contar, entender, analisar como as pessoas comuns se comportam, interpretam, resistem ou se conformam às doutrinas religiosas e culturais, são cada vez mais importantes.

As pautas políticas abstratas não comovem? Temos as histórias de vida, a micropolítica como pensadas por Guattari/Deleuze, temos as micro-histórias de Carolina Maria de Jesus, ou as narrativas midiáticas esfuziantes de Erika Hilton, os diários de um jovem entregador de aplicativo, a pedagogia do tijolo de Paulo Freire e outras mil histórias de anônimos ou celebridades para contar. 

Eis um campo decisivo de disputa e ativismo:  relações familiares, redes de amizade, ambientes de trabalho, ali onde valores e comportamentos são negociados e reproduzidos.