“O pessoal já sabe, mas preciso massificar isso entre a população. Depois, as alternativas são o Parlamento, uma ação no STF, esperar o último momento para registrar a candidatura e o TSE que decida”. (Jair Bolsonaro, 1/11/24)

Em entrevista à revista Veja, Jair Bolsonaro anunciou que pretende mobilizar apoiadores para obrigar o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a registrar a sua candidatura à Presidência em 2026, apesar da sua inelegibilidade, com duas condenações já dadas e de outras a caminho. Ele enquadrou o “pessoal” para arregimentar a “população” e atacar o TSE.

Capa da revista Veja de 1/11/2024
Capa da revista Veja de 1/11/2024

As “alternativas” são as etapas do golpe: a primeira, é a aprovação da anistia aos golpistas do 8 de janeiro pelo Congresso, em que seria incluída a anulação das suas condenações e alguma cláusula que garanta essa situação até as eleições. Como se trata de evidente inconstitucionalidade, Bolsonaro já prevê, como etapa seguinte, o embate no STF, que ele também já sabe que vai perder. Por isso, o registro da sua candidatura deve ficar para o “último momento”. E, depois, “o TSE que decida”, como se o tribunal pudesse decidir contra decisões anteriores dele mesmo e do STF. Ele só omitiu a etapa final, em que o “pessoal” mobilizaria a “população” para reagir ao TSE e para tentar melar a eleição.

É incrível a desfaçatez do indivíduo: se acha no direito de alugar os poderes da República em proveito próprio, de ameaçá-los, de desacatar as decisões que o contrariam e de sequestrar o processo eleitoral. E de anunciar isso tudo, na maior cara de pau.

TRETAS MIL

Bolsonaro também tentou sequestrar o processo eleitoral municipal deste ano. Infestou-o de candidatos fiéis, do PL ou de outros partidos, peitando, além da oposição, governadores e partidos de direita, além de ex-apoiadores. Sua estratégia acumulou irritações, sobretudo para ele mesmo. E não há nada que o irrite mais do que a postulação de outras candidaturas presidenciais no seu próprio campo, da direita.

Pablo Marçal no hospital após levar cadeirada de raspão em debate | Reprodução Youtube
Pablo Marçal no hospital após levar cadeirada de raspão em debate | Reprodução Youtube

Primeiro, Bolsonaro se emputeceu com Pablo Marçal que, contra a sua vontade, viabilizou sua candidatura a prefeito de São Paulo, pelo PRTB, partido com dirigentes ligados ao narcotráfico. Marçal superou Bolsonaro em boçalidade, arrancou 1,6 milhão de votos e quase chegou ao segundo turno. Mesmo derrotado, Marçal se insinua como presidenciável.

Enquanto Marçal tentava roubar eleitores de Bolsonaro na maior cidade do país, Bolsonaro fazia o mesmo em Goiânia, para abortar a candidatura presidencial de Ronaldo Caiado, governador de Goiás. Lançou candidatos próprios na capital e em outras cidades do estado, tentando derrotá-lo em casa. Questionou a fidelidade do governador à direita, por ele ter implantado o isolamento social para reduzir as vítimas da pandemia. Caiado foi fundador da União Democrática Ruralista (UDR), que promovia a violência no campo desde a ditadura. Mas, para Bolsonaro, a direita tem de ser mais que isso, tem de ser genocida.

Sessão de Debates Temáticos – Reforma Tributária

Em Goiás, Bolsonaro perdeu. Vitorioso, Caiado confirmou a candidatura presidencial. Seu partido, União Brasil, governará cinco capitais. Em São Paulo, Bolsonaro ganhou, mas não levou. Esteve ausente da campanha, tolhido pelo assalto de Marçal, e o mérito da vitória de Ricardo Nunes (MDB) é atribuído ao governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Enquanto Bolsonaro acumulava tretas pelo Brasil afora, Tarcísio ficou na dele e ainda se deu bem, por tabela, com o bom desempenho eleitoral do PSD, presidido por Gilberto Kassab, que é o seu secretário de governo.

Como sempre, Kassab anda dizendo que o PSD, que elegeu o maior número de prefeitos, inclusive em quatro capitais, terá candidato próprio a presidente, mas não se coloca como tal. Bolsonaro não o teme como concorrente, mas como promotor da candidatura do Tarcísio, já que o PSD tem também o vice dele e, portanto, tem interesse direto no lance. Por isso, Bolsonaro tem acusado Kassab de oportunista. O PSD integra, ao mesmo tempo, os governos federal e de São Paulo.

Bolsonaro também questionou a coerência direitista de Marçal, que aceitou participar de uma sabatina com Boulos durante a disputa do segundo turno contra Nunes. Marçal, então, avisou Bolsonaro que “o pau vai quebrar” se as críticas continuarem. “Você tem meu respeito, curto você, fica de boa. Seu problema não é comigo não, é com o STF. Você tem que ser elegível para disputar a eleição. Luta por isso e eu vou estar torcendo por você, você sabe disso. Mas não fica vindo para cima de mim porque nós não somos do mesmo partido, eu não devo satisfação para você. Cuida da sua vida, cara. Não tenta ser o malvadão para cima de mim não, porque eu sou uma pessoa boa.”

(E-D) Tarcísio de Freitas, Ricardo Nunes e Gilberto Kassab | Mônica Andrade / Governo do Estado de São Paulo
(E-D) Tarcísio de Freitas, Ricardo Nunes e Gilberto Kassab | Mônica Andrade / Governo do Estado de São Paulo

ESPELHO MEU

Logo após as eleições, com a inelegibilidade e o desgaste acumulado por Bolsonaro, choveram análises na imprensa e paparicos de políticos e de empresários, dando Tarcísio como nome mais forte da direita para 2026. O próprio presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, disse que ele “é o primeiro da fila”. Tarcísio ficou cheio de si, mas Bolsonaro detestou. Disse que apoiaria o governador “só depois de enterrado”. “Estou vivo. Com todo o respeito, chance só tenho eu, o resto não tem nome nacional. O candidato sou eu”.

“O resto” não deve ter gostado muito, mas todos estão acostumados com a falta de educação do ex-presidente. Seu filho, Flávio, inverteu a situação e disse que “é desrespeitoso com Bolsonaro atropelar a discussão sobre uma candidatura de Tarcísio”. Valdemar e Tarcísio meteram os rabos entre as pernas e declararam que Bolsonaro é o candidato. Na direita, o dilema é que as demais candidaturas dependem de rifá-lo para existir, mas precisam dele para ganhar.

Então, “o pessoal” terá de fingir que apoia a anistia para Bolsonaro, até a hora de enterrá-lo. O problema é que o cronograma do novo golpe atropela a agenda eleitoral. Tarcísio precisaria renunciar ao governo paulista seis meses antes das eleições, para disputar a Presidência, o que não precisaria fazer para disputar a reeleição. Mas Bolsonaro quer esticar a corda, ao máximo, do registro da sua candidatura, para atropelar o TSE, logo em seguida.

Em outras palavras, se Tarcísio se mantiver obediente a Bolsonaro, será induzido à confortável opção da reeleição, abrindo mão da hipótese de substituir Bolsonaro quando a corda arrebentar. Então, a fila vai andar, porque os demais não dispõem da mesma opção e terão que se antecipar para se projetarem nacionalmente. Outras cordas também vão arrebentar.

‘ANISFRIA’

No primeiro lance do jogo, deu ruim para Bolsonaro. Ele determinou aos deputados do PL que pautassem, de imediato, na semana passada, a votação da proposta de anistia aos golpistas na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, dominada por seu partido. Dali, ela seria remetida ao plenário, para condicionar o apoio da bancada aos candidatos às presidências da Congresso, à sua aprovação, antes do final do ano.

Bolsonaro foi ao Congresso, em pessoa, para pressionar, mas também teve de enfiar o rabo entre as pernas. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), agiu rápido e criou uma Comissão Especial para discutir a proposta, retirando-a da pauta da CCJ e do controle do PL. Agora, os partidos têm um prazo para indicar representantes no colegiado, que vão eleger o presidente e o vice, e indicar o relator, o que vai depender de acordo político prévio. O jogo só recomeça em 2025, com os novos presidentes do Congresso já empossados.

Bolsonaro quer nos comover, levando ao Congresso, para pressionar pela aprovação da anistia, os “órfãos de pais vivos”, que são os filhos dos golpistas que ainda estão presos, autores dos crimes mais graves cometidos em 8/1. Poderia levar, também, os filhos dos milicianos assassinos de Marielle Franco. E os seus próprios, senador, deputado e vereadores, para que todos vejam como estão bem cuidados com o pai ainda fora da cadeia.

Arthur Lira e Jair Bolsonaro | Isaac Nóbrega

Mesmo que o Congresso não se envergonhe por admitir discutir a impunidade de quem o aviltou, o invadiu e o depredou, não será fácil a execução nem da primeira etapa do plano, em espaço supostamente mais favorável. Empulhação, porrada e chantagem não serão suficientes para Bolsonaro cicatrizar feridas, sejam as suas próprias, ou as que provocou no seu campo político.

Não deixa de ser criativa a apropriação que Bolsonaro faz do instituto da anistia como primeira etapa de um novo golpe. Em se tratando dele, a anistia seria uma ‘anisfria’, que traria, no seu bojo, a certeza da reincidência. O STF precisa julgar os demais casos que o envolvem, se antecipar ao roteiro anunciado e nos proteger da nova escalada golpista.

Enquanto Seu Lobo não vem, oremos, repondo o clamor do salmo 144:11: “Livra-me e tira-me das mãos dos filhos estranhos, cuja boca fala vaidade e cuja mão direita é a destra da iniquidade”.