A interpretação corrente sobre os resultados do primeiro turno das eleições municipais é de vitória do Centrão e de crescimento da extrema-direita. Porém, antes de cravar um diagnóstico final, vale a pena aguardar o segundo turno, em 27/10, que ocorrerá em 52 cidades, inclusive São Paulo e outras 14 capitais estaduais.

Gilberto Kassab, presidente do PSD | Governo do Estado de São Paulo

Até agora, o PSD elegeu o maior número de prefeitos, superando o MDB, que, no entanto, elegeu mais vereadores. PP e União Brasil vêm em seguida no número de prefeituras conquistadas. O PSDB foi o partido que mais perdeu nesse quesito, mas ainda ficou à frente do PT, que teve uma ligeira recuperação, após sucessivos retrocessos nas últimas eleições. O PSB também cresceu e foi o partido à esquerda que obteve mais votos para prefeito. O PL estará disputando o segundo turno em 23 cidades com mais de 200 mil eleitores, incluindo nove capitais, e o PT em 13.

Em alguns estados, a maior parte das prefeituras ficou com o partido do governador. Por exemplo, o PSDB elegeu mais prefeitos no Mato Grosso do Sul, o MDB elegeu no Pará e o União Brasil, em Goiás. As prefeituras das capitais desses estados ainda estarão em disputa no segundo turno, mas a hegemonia dos governadores foi consolidada nos municípios menores. A força das máquinas administrativas estaduais e municipais pesou mais do que a radicalização política nacional.

Outro elemento decisivo foram as emendas parlamentares. O aumento da ingerência do Congresso sobre o orçamento federal ocorrida no governo passado é de difícil reversão, seja por meio do orçamento secreto ou das chamadas “emendas PIX”. Esses expedientes determinaram uma taxa recorde de reeleição. Os partidos do Centrão já detinham a maioria das prefeituras e agora ela foi consolidada. O fisiologismo fortaleceu-se.

Fogo no parquinho

Jair Bolsonaro foi condenado à inelegibilidade até 2030 e a sua situação tende a se agravar, considerando investigações e processos judiciais ainda em curso. Não obstante, no dia da votação em primeiro turno (6/10), ele acompanhou o seu candidato à prefeitura do Rio de Janeiro, Alexandre Ramagem, junto com os filhos Carlos e Flávio, que vestia uma camiseta com a inscrição “Bolsonaro 2026”. 

O principal objetivo do ex-presidente nessas eleições é fortalecer as suas bases de sustentação política para promover uma campanha pela anistia dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro do ano passado. Trata-se de uma cortina de fumaça para viabilizar a sua própria anistia.

Bolsonaro é candidatíssimo. Daí a sua irritação contra qualquer outro nome, da direita, que pretenda substituí-lo. É o caso do governador de Goiás, Ronaldo Caiado (União), um reacionário histórico, fundador da antiga UDR, União Democrática Ruralista. Bolsonaro apoia, em Goiânia, a candidatura de Fred Rodrigues (PL), que disputará o segundo turno contra Sandro Mabel (União), apoiado por Caiado. 

No intuito de questionar a legitimidade direitista de Caiado, Bolsonaro o acusou, num comício em Goiânia, de “governador covarde”, por ter preconizado, como médico que é, o isolamento social durante a pandemia. Por sua vez, Caiado reagiu dizendo que o ex-presidente “não tem jeito” e que é um negacionista irrecuperável. Apesar da disputa ainda em aberto na capital, Caiado obteve uma grande vitória no interior, e logo após o primeiro turno, declarou-se candidato à Presidência em 2026.

Tarcísio de Freitas | Pablo Jacob / Governo do Estado de São Paulo

O maior desgaste de Bolsonaro ocorre em São Paulo, onde optou pela candidatura à reeleição de Ricardo Nunes (MDB), o preferido do presidente do PL, Valdemar da Costa Neto, e do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos). Bolsonaro indicou Melo Araújo, um coronel da PM adepto da violência policial, como vice de Nunes. 

Porém, teve que enfrentar a dissidência, à direita, de Pablo Marçal (PRTB), que não chegou ao segundo turno, mas obteve 17,6 milhões de votos. O auto-intitulado “ex-coach” acusou Bolsonaro de “se render ao comunismo”, ao optar por Nunes. Agora, exige a retratação do ex-mandatário para apoiar Nunes na disputa do segundo turno contra Guilherme Boulos (PSOL). Marçal ameaça disputar a presidência em 2026, confrontando Bolsonaro e dividindo o eleitorado de direita.

Bolsonaro ficou ausente da campanha de Nunes, tentando evitar um confronto direto com os eleitores de Marçal, desgarrados da sua própria base eleitoral. Com isso, foi duramente criticado pelo pastor Silas Malafaia, apoiador de Nunes e desafeto de Marçal. Malafaia qualificou o ex-presidente de “porcaria de líder”. “Um covarde e outro psicopata”, disse, referindo-se a Bolsonaro e Marçal. Bolsonaro se calou, mas seu filho Flávio repreendeu o pastor: “roupa suja se lava em casa”. Já Marçal associou o pastor à figura bíblica do irmão e traidor do rei Davi: “O comunismo é o Golias, eu sou o Davi, e entrou o personagem novo nesse fim de semana, que é o Malafaia. Eliabe é o irmão mais velho de David. O Eliabe, que é o Silas, se levanta para me desmoralizar”.

Até agora, quem vem se saindo melhor na novela eleitoral paulista é Tarcísio de Freitas, que entrou de cabeça na campanha de Nunes e é tido como responsável por sua vitória apertada no primeiro turno. Se Nunes derrotar Boulos no segundo turno, Tarcísio, e não Bolsonaro, sairá como o grande vitorioso. Com isso, o governador acumulou prestígio junto ao entorno de Bolsonaro. Malafaia reconheceu a sua liderança e Costa Neto disse que Tarcísio é “o primeiro da fila”, caso Bolsonaro não consiga reverter a sua condenação.

Pablo Marçal | Reprodução Redes Sociais

Bolsonaro desgastado

A direita cresceu, mas também se multiplicou. Bolsonaro ainda é a principal referência extremista desse campo e dispõe do recall de duas eleições e de um mandato presidencial. E ainda teve o mérito de amalgamar ruralistas, armamentistas e pentecostais, reestruturando a direita. Porém, o bom desempenho eleitoral dela, em vez de fortalecê-lo, o desgastou. O bate-boca abalou o “mito” e estimulou diversas candidaturas, deixando muitas dúvidas sobre a possibilidade da direita se unir em torno de um único candidato à Presidência.

O PL cresceu nas grandes cidades e é o partido com maior número de candidatos no segundo turno. Mas, em várias delas, a disputa se dará contra adversários também da direita, com o risco de novas fissuras políticas. 

É o caso de Campo Grande, onde Bolsonaro optou por apoiar Beto Pereira, candidato do governador, do PSDB, que ficou fora do segundo turno. Agora deve recompor com sua ex-ministra Tereza Cristina, apoiando a sua candidata, Adriane Lopes (PP), no segundo turno. Porém, em oposição à candidata do União Brasil, Rose Modesto. 

Em Curitiba, ocorre a situação inversa, com Bolsonaro apoiando a candidata do PMB, Cristina Graeml, contra o candidato do PSD, Eduardo Pimentel, apoiado pelo governador Ratinho Júnior (PSD).

Fissuras também ocorrem em outros campos e em outros estados. O PDT, que integra o governo Lula, está profundamente dividido e sofreu grande derrota no Ceará, base política do ex-presidenciável Ciro Gomes, onde foi hegemônico durante décadas e dispunha de 67 prefeituras, agora reduzidas a cinco. O atual prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), ficou fora do segundo turno e o partido se recusa a apoiar o candidato do PT, Evandro Leite, que disputa o segundo turno contra o candidato do PL, André Fernandes. É improvável que o PDT insista em outra candidatura presidencial de Ciro em 2026.

Jair Bolsonaro | Divulgação

Também deve ser levada em conta uma possível candidatura presidencial do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), reeleito com grande vantagem em 2022 e que obteve outra vitória consagradora em 2024, elegendo grande número de prefeitos no estado. O seu candidato, Igor Normando (MDB), chegou à frente em Belém e disputa, com vantagem, o segundo turno contra o bolsonarista de raiz Éder Mauro (PL). A gestão de Barbalho vem sendo bem avaliada, impulsionada por investimentos na realização, em Belém, no final de 2025, da conferência da ONU (COP-30) sobre mudanças climáticas. Hélder tem sido um aliado importante para o presidente Lula.

Para Bolsonaro, só resta o descaminho da tal anistia, que, no caso, implicaria em impunidade. Ela até poderia vir a ser aprovada nesta legislatura do Congresso, mas teria todas as chances de cair no STF. É provável que os seus desafetos, na direita, finjam apoiar essa anistia, esperando o seu apoio eleitoral, mas torcendo para que ele siga sendo inelegível, abrindo espaço para as candidaturas emergentes nesse campo. A fila anda.