Por Fernanda Merizio

A 17ª edição do Festival Internacional de Filmes de Mulheres de Salé, que acontece todos os anos na cidade de Salé, no Marrocos, oferece uma oportunidade única de descobrir o olhar de cineastas de todo o mundo e permite uma troca profunda sobre o lugar das mulheres na produção cinematográfica. Os filmes da programação deste ano foram dirigidos por mulheres de mais de 20 países, incluindo produções da África, América Latina, Ásia, Europa e América do Norte. O Grande Prêmio da categoria documentário foi atribuído ao filme ”O homem vertigem”, da cineasta guadalupense Malaury Eloi Paisley. O filme vai ser exibido muito em breve em festivais de cinema brasileiros.

“O homem vertigem” é, de certa forma, um autorretrato. Malaury embarca em uma viagem introspectiva em busca de sua identidade por meio das relações íntimas que tece com habitantes da cidade de Pointe-à-Pitre, em Guadalupe. A diretora acompanha e aborda o cotidiano desses “seres flutuantes”, que transitam entre a loucura e a razão — se é que existem fronteiras bem definidas — e que vivem em casas abandonadas, prédios em ruínas ou em situação de rua. O filme transborda dualidade: de um lado, a presença da morte e do desespero, espaços que parecem habitar os personagens; do outro, pequenos rituais de cuidado que os conduzem de volta à esperança e à vida, através do ato cinematográfico.

Segundo Malaury, “A vertigem é uma angústia, um estado de desorientação, uma loucura passageira. São homens que andam em círculos, prisioneiros de Pointe-à-Pitre, uma cidade-labirinto. Eles a atravessam a pé, sempre voltando aos mesmos lugares, como uma peregrinação sem fim. A vertigem deles também é a nossa”.

Confira a entrevista com a cineasta na íntegra:

Fernanda Merizio (Cine NINJA): Seu filme é uma busca — talvez não de maneira explícita — por sua identidade. Você embarca nessa jornada através da construção de relações com homens e mulheres marginalizados que se encontram em uma espécie de “entre-lugar” da existência. Como você destacou, são pessoas que apresentam um estado de ambiguidade, “entre a vida e a morte”. O que pode dizer sobre esta colocação?

Malaury Eloi Paisley: Tudo o que observei nos personagens do meu filme está ligado a essa questão identitária. É algo que me habita profundamente. Como eu disse, dos dois lados da minha história, existe o silêncio. Tudo o que sei hoje é fruto da minha busca, porque muitas respostas não são dadas.

Descobri, há um ou dois anos, que meu avô era Arawak. Mesmo que eu já suspeitasse, pois a maioria dos descendentes de indígenas em Guadalupe são descendentes dos Arawaks. Então, existe essa ideia de que estamos no coração do Caribe, mas sem um vínculo real com os outros estados caribenhos, porque somos franceses. Isso faz com que ignoremos a história que nos cerca. Tudo o que aprendemos é a história da Europa e do Ocidente. Não temos conexão com a América Latina.

Há pouco tempo eu nem conseguia me situar. Se você tivesse me perguntado onde fica Barbados, eu seria incapaz de responder! Como podemos avançar na vida sem nem mesmo saber onde estamos, mesmo geograficamente? Na escola, aprendemos de cor os países e as cidades do continente europeu. Me lembro dessa necessidade de memorizar o mapa, as cidades e rios europeus. Mas aprender sobre o Caribe ou a América Latina era opcional, se sobrasse tempo. Então, quando não sabemos nem onde estamos no espaço, é muito difícil nos conceituar como ser.

A escravidão é algo irrecuperável, uma perda irreversível. As populações deportadas foram misturadas e não temos a menor ideia de nossas origens exatas. Não sabemos se nossos ancestrais vieram do Benim, do Senegal ou de outros países. Patrick Chamoiseau fala sobre o porão do navio. No seu livro ele fala sobre “a travessia do mar” e enfatiza: “o navio rasgou o mundo”.

Houve um processo de individualização que começou ali. A comunidade deixou de ser possível. Tudo foi destruído. E o ser poético que nasceu dessa história teve que criar sozinho, sem comunidade. Isso gerou uma separação. Mesmo nas nossas danças, nossos cantos e nossas práticas em Guadalupe, os dançarinos são individuais, enquanto em outras culturas há uma dimensão comunitária. Então, como, apesar de tudo isso, conseguimos criar poesia e música?

Sempre houve luta em Guadalupe. Existem confrontos todos os anos! No filme vemos trechos dos motins de 2021. Somos um povo que luta permanentemente, mas o que realmente queremos? Eu não sei. Muitos falam da luta pela independência de Guadalupe. Mas por que pessoas de fora podem decidir se um povo merece independência ou não?

Para mim essa é uma questão essencial. E essa questão da identidade está presente em todo o meu filme, embora de maneira implícita. Por exemplo, aquele homem idoso que foi a Cuba poderia ter ido para a Bolívia. Che Guevara morreu antes, mas ele mesmo disse: “Não! Eu vou voltar porque existe uma luta em Guadalupe!” Ele tentou. Mesmo tendo toda a oportunidade para se estabelecer em Cuba, ele sempre teve esse desejo de retornar à Guadalupe.

CN: Na sequência do seu filme que foi filmada em uma praia, esse senhor conta que passou um tempo na França mas que em determinado momento ele diz à sua esposa: “Eu vou deixar, querida! Eu vou te deixar porque não trabalho mais para a França.” Acho que esse ato metaforiza a rejeição que ele apresenta às limitações psíquicas impostas pela sociedade ocidental, onde o pensamento funciona de uma maneira muito específica. O ocidente nos faz acreditar que, se não seguimos esse modelo, seremos considerados loucos. Me parece que o ato de dizer que ele não trabalha mais para a França significa também que o lugar da sua loucura é, talvez, uma escolha: a escolha de não mais participar de uma sociedade que opera de uma determinada forma…

Malaury: É o que chamamos de “marronage”. Os “marrons” sempre existiram. São as pessoas que escapam do sistema. Eu sou um pouco assim! Quando ele disse isso, eu ri, porque eu ainda estava na França. Mas, assim como ele, de repente, pensei: “Não sei o que vou fazer, mas não posso continuar aqui. Me adoece!”

Eu tinha a sensação de que viver nessas cidades, nesses ambientes, me deixaria doente e que acabaria por me tornar um zumbi. Mas quando voltei a morar em Guadalupe algo se reconectou dentro de mim, embora eu nunca tenha recuperado quem eu era antes de partir.

CN: Por essa razão eu entendo seu filme como um autorretrato. E entendo que seja por essa razão que você diz que seu olhar vem de um lugar diferente quando te comparam ao Pedro Costa. Estou certa?

Malaury: Sim. Nos filmes de Pedro Costa ele entende a cidade como um choque plástico. Para mim, não se trata de um choque plástico; é o que eu conheço. Acho que cada pessoa expressa algo da minha própria dificuldade de estar no mundo. Portanto, eu não invento a beleza; a beleza já está ali.

Ao meu ver, há uma certa beleza em viver sem códigos. Mesmo o senhor que eu filmei sentado em um banco de uma praça… eu pensei: não é ele que tem um problema! O problema é não conseguir se integrar a este sistema. Dizem que ele está na rua, mas ele não está na rua, é uma escolha. Mas como é possível viver assim?

Por exemplo, Bernard – aquele que caminha na praia – há muitos homens como ele. Eu viajo por ilhas do Caribe e sempre vejo essas pessoas que cuidam da terra, que se tornaram guardiões, que constroem objetos abstratos, que limpam a praia. Eu não sei como explicar, é como se fossem seres flutuantes que, na verdade, são guardiões.

CN: Enquanto a sociedade continua os tratando como pessoas incapazes de trabalhar. Assim eles permanecem marginalizados e invisíveis. Essa percepção só amplifica o isolamento dessas pessoas e os impede de se afirmarem como indivíduos. É essencial reconhecê-los não apenas como guardiões da terra, mas também como portadores de uma história e de uma cultura que merecem ser ouvidas, certo?

Malaury: Na verdade, eles estão nesses lugares trabalhando. O que acontece é que eles não se encaixam nesse sistema. E, no aspecto político, existe a loucura. Além disso, eu pensava que tudo isso era coisa da minha cabeça, mas existe um capítulo no “Discurso Antillano”, de Édouard Glissant – o pensador da crioulidade. No livro intitulado “A Crioulização, uma Visão Moderna dos Mundos”, há um capítulo chamado “O Delírio Verbal”. Nesse capítulo, ele fala sobre as pessoas que aparecem no meu filme. Ele fala sobre a loucura.

Em Guadalupe temos o “bigidi”. O “bigidi” está presente na nossa dança tradicional. É o ato de tropeçar, mas nunca cair. De estar sempre à beira do abismo, vivendo nos limites, nas fronteiras da loucura e do desequilíbrio. É o desequilíbrio do ser! Temos uma coreógrafa famosa no mundo inteiro chamada Lena Blue. Ela fez uma tese que mistura antropologia, filosofia e sociologia, levantando a questão de como encontrar a história nos corpos. Eu também danço. Então, há uma parte da história que eu compreendi dançando com ela. E como transcrever esse desequilíbrio?

CN: Você também coloca a necessidade de atualização da história…

Malaury: O cinema em Guadaloupe não tem uma base sólida, então eu precisava me apoiar em estéticas que já existem. Porque criamos literatura e música. Mas como traduzir essa estética? Pessoalmente, eu acredito que o cinema permite criar arquivos, mas também permite resgatar a memória.

Na entrevista que tive com Nadia Yala Kisukidi, ela me disse que eu mobilizei toda uma biblioteca anticolonial. Então, há referências sutis como essas: o senhor idoso diz que ama Aimé Césaire; e também temos as estátuas, entre outras referências que aparecem no meu filme de maneira mais sutil.

CN: O filme é muito poético e também muito denso, mas na sequência em que vemos esse piquete de greve com aquele canto é como um sopro de esperança. Finalmente, podemos respirar!

Malaury: Quando as pessoas cantam “Guadeloupe, Guadeloupe”, é o hino nacional. Nessa sequência, filmamos um piquete de resistência. O pessoal médico dos hospitais foi suspenso após a Covid porque se recusou a ser vacinado. Consequentemente, houve uma enfermeira que cometeu suicídio. Na Guadalupe, resistimos à vacina porque pensamos que já fomos envenenados o suficiente e estamos cansados de fazer o que a França nos manda: “Tomem isso, vacinem-se, comam isso, não comam aquilo.” Então, resistimos. E essas pessoas estão protestando contra o domínio colonial.

Gérard Lockel, um teórico da música “tradicional” guadalupense. Eu coloco aspas em “tradicional” porque é contemporâneo. É a França que diz que é música tradicional, mas nós tocamos todos os dias, nós vivemos isso! E mais, é mais que uma música, é uma cultura, uma forma de resistir. Ele escreveu esse hino nacional: “Guadalupenses, guadalupenses, estamos em perigo. Não podemos continuar assim, precisamos resistir.” Essa música permeia todo o filme.

Ele descreve algo em suas músicas há 60 anos, mas continua a mesma coisa. Como falar dessa repetição no cinema? Eu me perguntei: “Devo colocar música no filme? Como fazer isso?”. Eu não sabia exatamente como.

Em um dado momento eu havia desistido dessa questão. E para mim isso faz parte das coisas talvez místicas do filme. Muitas coisas aconteceram no filme com um toque de magia. Não era planejado, mas pensei que deveríamos filmar. Mas naquele momento eu não queria entrevistar as pessoas, porque parece que já falamos demais. Já falamos bastante. Mas como transmitir o que está acontecendo lá? Então decidi ir com o poeta. Eu não sabia o que íamos fazer.

Acredito que o cinema é uma questão de fé. Primeiro é preciso acreditar. E então manifestar. Chegamos lá e no momento em que começamos a filmar as pessoas começaram a cantar!

CN: Apesar do desespero que sentimos ao longo de todo o filme, os pequenos rituais cotidianos de cada personagem em seu lugar são muito poderosos. Esses rituais nos levam a algo diferente. A canção durante o piquete de greve está em ressonância com a cena do encontro com o Eddy – o personagem que você acompanha e reencontra vivendo em uma casa abandonada no meio do nada. Ele retorna ao uso do crack e está numa situação delicada, mas vemos que, apesar de tudo o que foi imposto sobre sua pele, ele acorda e varre a casa. Isso é movimento, é esperança! Ou seja, esse ato de varrer a casa parece um sopro de vida.

Malaury: Mas é porque ele acredita que está fazendo o filme! Além disso, eu tinha perdido contato com Eddy por quase três anos. E reencontrei ele um mês e meio antes do fim das filmagens. Isso também é algo muito místico. Eu estava conversando por acaso com alguém que me disse: “Mas eu conheço ele. Ele foi meu amigo de infância! Eu conheço a irmã dele, mas faz muito tempo que não a vejo, talvez uns 20 anos.” Pedi para ele me levar até a irmã dele. A irmã me contou que ele estava em uma cidade chamada Basse-Terre, mas não sabia exatamente onde. Então decidi criar um protocolo no qual eu iria uma ou duas vezes por semana até essa cidade para procurá-lo.

Fui até essa cidade num domingo e comecei a caminhar. Aí comecei a conversar com alguns traficantes que me levaram numa viagem em busca dele. Eles disseram: “Ah, acho que sei onde ele está!” E então me mandaram para uma casa abandonada. Alguém saiu da casa, mas não era ele. Depois falei com outro traficante, entrei no carro dele e ele me levou até outro traficante, que me disse: “Eu sei de quem você está falando. Eu vi ele ontem à noite! Se eu o encontrar novamente, posso passar seu número para ele. Se ele quiser te ver, ele vai te ligar.”

Eu não sabia se ele queria me ver. Então fui embora e logo depois o telefone tocou. Decidi ir vê-lo para saber como ele estava e quando cheguei lá ele me contou um pouco sobre a vida dele e me disse que estava devendo dinheiro para várias pessoas. Então ele não queria sair daquele lugar naquele momento. E logo ele me perguntou sobre o filme.

O cinema também é uma forma de se ajudar a viver. Então voltei uma vez por semana naquele lugar, e em certo momento, propus de fazermos uma faxina na casa e de lavarmos as roupas juntos. Depois, ele me propôs a leitura. Quando o reencontrei ele mal saía de casa. Ele lia pelo menos um livro por dia. Então é isso. Filmar também é registrar rituais de vida.

Quando filmo, espero sentir que a pessoa tem tanto desejo de fazer o filme quanto eu. Que ela desenvolva seus próprios motivos para querer participar do filme. Não é só eu chegando com vontade de filmar. Caso contrário, não faz sentido. Ele não tem exatamente as mesmas razões que eu. Ele entende que sua existência é política, mesmo sem expressar isso de forma intelectual. Ele sabe o porquê de estar fazendo tudo isso.

CN: A sequência em que você faz a barba daquele homem que está doente também me emocionou. Às vezes, esse aparelho que ajuda esse senhor a respirar nos toca na dor, mas, na verdade, ele também nos mostra que, apesar de sua doença, ele ainda tem um desejo de vida. É essa máquina que o ajuda a respirar todos os dias. Vejo tudo isso como uma metáfora sobre sua relação com o cinema…

Malaury: Às vezes, quando eu ia à casa dele, eu mesma estava cansada. Eu estava doente então andava bastante cansada. Eu chegava na casa dele e me deitava, dormia por duas horas. Porque às vezes você chega com a câmera e eles começam a falar e eu queria quebrar isso. A realidade se repete. Nada se perde. Precisamos apenas reativar algumas coisas.

O momento em que estou fazendo a barba dele não estava previsto. Eu queria filmar a enfermeira que fazia isso cotidianamente, porque eu mesma tenho fobia. Mas ele deixou a barba crescer de propósito e a enfermeira não veio. Então eu pensei que ele iria fazer a barba sozinho, mas ele me disse: “É você! É você quem vai pegar a máquina e fazer minha barba.” Mas eu não me sinto à vontade. Eu tenho medo! Estou tremendo, mas tenho essa responsabilidade. Então encontrei uma forma de me filmar fazendo a barba dele.

O cinema também é um ato de cuidado. Eu vivi um pouco com ele. Eu cozinhava e fazia compras para ele. Eu dava meu próprio dinheiro para fazer as compras mas, ao mesmo tempo, eles nunca me pediram nada. Com Eddy, às vezes eu caminhava com ele pela cidade inteira. Ele mendigava na rua, mas ele nunca me pediu dinheiro.

CN: Para finalizar, tem também esse ato de iluminar os edifícios que estão quase destruídos e um tanto quanto vivos ao mesmo tempo. Porque vemos pessoas que vivem por ali, como você disse, em um estado “entre a vida e a morte”. Esse ato significa pra mim, de maneira metafórica, o fato de você ter como objetivo destacar a história dessas pessoas que passam despercebidas diante de todos e que são invisibilizadas a todo momento. O que tem a dizer sobre isso?

Malaury: Quando eu caminhava com Eric, o poeta, tinha a impressão de que ninguém nos via. Estamos na cidade, caminhamos, e sinto que entramos em um mundo paralelo, nós dois. Como se, uma vez que começássemos a andar, penetrássemos uma espécie de interstício da realidade.

Eu queria transmitir essa impressão no filme. Vamos a um mundo que, embora faça parte do mundo, não conseguimos mais ver. Falo de zombificação. Quando o público assistiu ao filme em Guadeloupe, algumas pessoas me disseram que tinham a sensação de estarem possuídas e alienadas, mas que o filme abriu seus olhos, que os despertou. Os planos duram muito tempo. Vemos o tempo passar, e essa escolha também é parte de um desejo. Quero que o público seja obrigado a estar presente e a olhar!

Fernanda Merizio e Malaury Eloi Paisley, diretora do filme “O Homem Vertigem”. Foto: Arquivo pessoal