Lei de Bases de Milei: Congresso da Argentina aprova por um voto a demolição do Estado
O debate durou 13 horas em meio a violenta repressão fora do Senado. Confira quais foram as concessões do governo e as principais regulamentações aprovadas
Seis meses após tomar posse e após múltiplas concessões, o presidente da Argentina Javier Milei obteve aprovação no Senado do seu projeto de Lei de Bases, uma versão mutilada do quadro jurídico com o qual pretende desregulamentar a economia, desmantelar o Estado e assumir poderes legislativos. O suspense sobre o resultado durou mais de 13 horas até a votação em geral e depois continuou com o debate em particular e o tratamento de uma reforma tributária. A votação dos senadores resultou num empate de 36 a 36, definido pela vice-presidente Victoria Villarruel a favor do Governo. Foi o fim de um dia marcado por protestos sociais contra a lei e pela repressão policial ordenada pela administração de extrema direita em torno do Congresso, com feridos, 30 detidos, gás, balas de borracha e carros em chamas.
A reação do governo foi distópica. Ele comemorou a repressão e o resultado da votação: “Com grupos terroristas atacando o Congresso, as forças de segurança tendo que ser mobilizadas em defesa da democracia (…) esta noite é um triunfo para o povo argentino e o primeiro passo para a recuperação da nossa grandeza, tendo aprovado a reforma legislativa mais ambiciosa dos últimos 40 anos”, indicou um comunicado da Presidência da República. A rigor, para virar lei, o projeto de Milei deverá voltar a ser discutido na Câmara dos Deputados, visto que foram introduzidas alterações na meia sanção aprovada em abril.
Voto por voto
Longe de ser um triunfo parlamentar, o que esse resultado evidencia é a fragilidade do tecido legislativo do Congresso Nacional. A aprovação custou caro ao Governo. Numa grande minoria num corpo de 72 senadores, com apenas sete assentos próprios e outros seis dos seus aliados do PRO, liderado pelo ex-presidente Mauricio Macri, o partido no poder, La Libertad Avanza, teve de recusar muitas das suas propostas iniciais. Para chegar à metade mais um dos votos, ele negociou até o último momento, ainda durante a sessão, com os representantes do que Milei despreza como a “casta política”. Nos corredores do Congresso a notícia era a mesma: votos por favores. Como foi o caso da senadora macrista Lucia Crexell, a quem Milei se ofereceu para ser embaixadora da UNESCO em Paris em troca do seu apoio. Ao longo do dia, a hashtag #senadorescumplices cresceu para revelar os políticos que concordaram em atender aos pedidos do presidente:
Os principais pontos aprovados
1. Poderes delegados
Uma das chaves mais importantes da Lei de Bases para o governo é que ela confere ao presidente poderes extraordinários por um ano, ao declarar “emergência pública em questões administrativas, econômicas, financeiras e energéticas”.
Isso permitirá que Milei tenha, até meados de 2025, competências que normalmente correspondem ao Poder Legislativo.
Assim, poderá decidir sobre essas questões sem passar pelo Congresso. Porém, não será um poder absoluto.
Para conseguir a aprovação da lei, o Executivo aceitou algumas limitações, como o compromisso de não intervir ou dissolver cerca de 15 organizações públicas. Durante o período de poderes delegados, o presidente poderá legislar através de decretos, que deverão então ser controlados pela mesma Comissão Legislativa bicameral que controla decretos de necessidade e urgência.
2. O RIGI
O Regime de Incentivo aos Grandes Investimentos (RIGI) é uma das propostas mais polêmicas da Lei de Bases.
O RIGI prevê benefícios fiscais, aduaneiros e cambiais por 30 anos, além de estabilidade regulatória e proteção contra abusos do Estado, para projetos superiores a US$ 200 milhões, a fim de incentivar grandes investimentos, nacionais e estrangeiros, a longo prazo.
Destina-se a setores considerados estratégicos para o desenvolvimento do país, como energia, agricultura, mineração (incluindo extração de lítio) e infraestrutura, enfim, entrega de recursos naturais.
3. Privatizações
A Lei de Bases permitirá ao governo colocar à venda algumas empresas estatais.
Porém, nem todas serão empresas do setor público, como propõe o projeto original apresentado por Milei. Muito longe disso, das quase 40 empresas que estavam “sujeitas a privatização” na proposta inicial, apenas duas são públicas.
4. Reforma trabalhista
A Lei de Bases contém diversos artigos que modificam o regime trabalhista. A norma oferece benefícios para empregadores que regularizarem seus trabalhadores.
Mas, ao mesmo tempo, elimina sanções contra o trabalho “informal”, retirando a remuneração especial que hoje recebem os empregados não devidamente cadastrados.
Na rua, repressão
“O país não se vende, se defende”, foi o slogan mais gritado desde o início. Depois do meio-dia, os incidentes eclodiram. Os numerosos agentes de segurança destacados na zona tentaram desobstruir a via pública e os confrontos multiplicaram-se com os manifestantes que lideraram uma verdadeira caçada humana às mãos da polícia. As imagens se repetiram continuamente nas redes sociais: feridos, gás lacrimogêneo, jovens, idosos, professores, autoconvocados, todos igualmente no centro da repressão. A polícia prendeu cerca de 30 pessoas e entre as dezenas de feridos havia até deputados da oposição. À noite, após a aprovação da lei, ocorreram novos incidentes. Naquela época, na cidade de Buenos Aires e em diferentes partes do território portenho, ouviam-se batidas de panelas e frigideiras de protesto.
Agora, resta saber o que acontecerá com os deputados, embora já haja um presságio: o Congresso Nacional demonstrou mais uma vez que não está à altura da base do povo.