Por Isabella Vilela

O documentário Telas, estreia na direção de Leandro Goddinho, já tem data de lançamento para as capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. A produção acompanha nove influenciadores digitais que usaram as redes sociais para que as suas vozes fossem ouvidas. A proposta do longa é responder à pergunta: será possível transformar o mundo através das telas de nossos celulares e computadores? Distribuído pela O2 Play e produzido pela Claraluz Filmes, o documentário chega aos cinemas paulistas e cariocas em 06 de junho.

Telas investiga como influenciadores digitais brasileiros usam as mídias sociais para promover o ativismo em temas como a representação racial, questões LGBTQIA+, feminismo e política. Enquanto criam conteúdos para diferentes plataformas, tratando de assuntos considerados tabus de forma leve e desconstruída, os influenciadores compartilham seu cotidiano e criam um senso de comunidade entre seus seguidores.

Telas conta com a participação de Aline Maccari, Gabriel Comicholi, Livia La Gatto, Lorelay Fox, Maíra Medeiros, Marcos Oli, Thamirys Borsan, Valter Rege e Victor Di Marco. A ideia para o documentário surgiu como uma expansão de um projeto de curta do diretor, chamado “Positive Youtubers – A Machinima Documentary”, que investiga como pessoas que vivem com HIV fazem ativismo digital através das redes sociais no Brasil.

De acordo com o documentário, estudos recentes apontam que, em média, adultos passarão pelo menos metade de suas vidas na frente de uma tela. Pensando nisso, o documentário busca responder questões importantes quanto à relação das pessoas com as mídias sociais.

Leandro Goddinho e Fernando Sapelli, produtor do documentário, conversaram com a Cine Ninja sobre a atuação do longa como um registro arqueológico do momento da pandemia, bem como a nossa relação com o ativismo originário da internet. Confira!

Cine Ninja: Durante o documentário, parece que o único desafio foi a conexão com a internet, como foi mostrado em um dos trechos. Considerando as restrições impostas pela pandemia, vocês enfrentaram outros desafios durante a produção?

Fernando Sapelli: Os desafios foram vários. Gravamos o documentário em 2021, ainda durante a pandemia, quando muitos protocolos estavam em vigor. A produção aconteceu de forma remota, com quase todos os profissionais trabalhando de suas casas e com filmagens acontecendo em São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre. Tínhamos apenas uma parte da equipe que ia até a casa dos personagens, levava o equipamento, ajudava a montar, para depois a equipe conectar e seguir com a produção.

Montar esse esquema de produção remota foi um desafio significativo, mas também proporcionou uma oportunidade valiosa de aprendizado. Surpreendentemente, o diretor estava em Berlim na época. Embora possa parecer uma ideia absurda dirigir um filme remotamente, isso se alinhava com a temática do filme e tornou-se parte de sua estética, permitindo que todos experimentassem o trabalho remoto. O diretor, Leandro, havia elaborado um roteiro que serviu como base para a produção e as entrevistas. No entanto, a narrativa do documentário só foi verdadeiramente moldada durante a fase de edição junto com Thiago Carvalhaes, que desempenhou um papel essencial ao explorar novos caminhos narrativos para o filme.

Cine Ninja: Como foi o processo de seleção dos entrevistados? Houve algum assunto ou alguma pessoa que vocês gostariam de incluir, mas não foi possível?

Fernando Sapelli: “Telas” se iniciou a partir de um projeto de curta do diretor Leandro Goddinho, chamado “Positive Youtubers – A Machinima Documentary”, que investigava como pessoas que vivem com HIV têm feito ativismo digital através das redes sociais no Brasil. O curta foi exibido em dezenas de festivais de cinema e selecionado para a 22ª Conferência Internacional de AIDS, em Amsterdam. Leandro apresentou a proposta para a produtora, que vem produzindo projetos, tanto documentário como ficção, que possam servir como ferramenta para debater importantes temáticas sociais. Em 2018, fomos contemplados com um edital do Ministério da Cultura que possibilitou sua realização. O recurso foi repassado apenas no início de 2020, porém por conta da pandemia só conseguimos gravar entre 2021 e 2022.

O projeto foi sendo modificado ao longo desse tempo, muito por conta da pandemia. Inicialmente, a proposta era focar em influenciadores digitais que dialogavam mais com o curta metragem. Eventualmente, fomos entendendo que seria mais interessante buscar personagens que abordam pautas progressistas variadas, importantes para nosso desenvolvimento político e social, e se comunicam com públicos diversos. Fizemos pesquisa ao longo de 2020 e 2021 para identificá-los. O Gabriel Comicholi é o único que está tanto no curta quanto no longa; todos os outros são novos.

Cine Ninja: Você comentou que o documentário serve como um registro antropológico do momento da pandemia. Dois dos entrevistados, inclusive, comentam sobre como perderam entes queridos para a Covid-19. Um deles cita até a revolta que sente em relação às atitudes do então presidente Jair Bolsonaro perante as vítimas. De que maneira você acha que o longa pode atuar como um instrumento de conscientização e educação política para as futuras eleições?

Fernando Sapelli: “Telas” de fato funciona como um registro antropológico, um documento histórico dessa cultura da internet durante um dos períodos mais desafiadores que já enfrentamos. Só se passaram 4 anos desde a pandemia, e é um tempo relativamente curto para fazer sentido de tudo o que aconteceu. Muitas feridas ainda seguem em aberto.

O filme explora a questão do ativismo digital: como os influenciadores digitais têm o poder de transformar o mundo, ou se realmente acreditam nesse potencial que possuem. O documentário, de certa forma, também questiona se eles podem ser considerados ativistas e qual é o impacto desse conteúdo que produzem. Essa é uma reflexão atual e relevante, especialmente em um momento em que o ativismo e a maneira como lidamos com questões sociopolíticas estão em constante evolução, com transformações cada vez mais rápidas e impactantes.

Cine Ninja: Qual é a sua visão sobre o futuro do ativismo digital no Brasil, especialmente após os debates obtidos durante a produção do documentário?

Fernando Sapelli: Não é preciso falar muito de como o brasileiro ama a internet. Somos o terceiro maior consumidor de redes sociais em todo o mundo. Uma pesquisa de 2022 também aponta que o Brasil é o segundo país que mais segue influenciadores. O filme é sobre essa cultura, sobre como os influenciadores digitais brasileiros estão usando as mídias sociais para promover o ativismo em temas sociais como representação racial, questões LGBTQIA+, feminismo, inclusão e política; também é uma reflexão deles próprios sobre esse papel que cumprem. Com as telas cada vez mais presentes na nossa vida, o futuro do ativismo digital precisa ser cada vez mais plural, diverso e inclusivo.

Cine Ninja: O documentário mostra influenciadores que discutem temas como a representação racial, questões LGBTQIA+, feminismo e política. Em um trecho, todos os entrevistados comentam sobre as suas respectivas bolhas e como eles se sentem confortáveis nelas. Na mesma linha, todos esses assuntos estão inseridos no contexto dos algoritmos, na produção de conteúdo e nas consequências da vida na internet. Pensando nisso, queria saber se vocês consideram algum público-alvo específico para o documentário e por quê?

Leandro Goddinho: Inicialmente, o filme era direcionado para um público jovem, que possui uma conexão mais forte com a internet e as redes sociais. No entanto, com a inclusão das temáticas da pandemia e das questões políticas que foram debatidas e aprofundadas, acredito que o filme agora alcança um público mais amplo. O Brasil é um dos países que mais utiliza redes sociais no mundo e, embora exista um grande preconceito em relação ao conteúdo produzido por influenciadores, frequentemente considerado inferior por uma elite intelectual, a relevância dessas figuras na nossa cultura contemporânea já está mais do que comprovada.

Nesse sentido, o filme é destinado a todos os públicos, de todas as idades. Contudo, por abordar pautas progressistas, talvez tenha uma ressonância maior entre aqueles que se identificam com essas questões.

Cine Ninja: Parece que agora no pós-pandemia os algoritmos ficaram mais fortes e mais inteligentes e estamos em uma velocidade quase inalcançável de informações. Assim como foi abordado no documentário, você acha que as redes sociais continuarão a ser uma ferramenta eficaz para o ativismo político, ou vê possíveis mudanças nesse cenário?

Leandro Goddinho: O mundo já está profundamente transformado pelas redes sociais. Movimentos políticos e sociais ganharam força mundial graças à internet, proporcionando uma plataforma poderosa para vozes anteriormente marginalizadas. Embora não possamos prever com certeza a força que as redes sociais atuais terão no futuro, é provável que algumas deixem de existir ou percam relevância. No entanto, como mencionado no documentário, novas redes surgirão e novas formas de conexão continuarão a dar voz aos movimentos sociais e ativistas em geral.

O problema reside na profundidade com que esses temas são abordados. Muitas vezes, essa discussão é superficial na internet. Ainda assim, é relevante iniciar uma discussão sobre determinado tema, pois é o primeiro passo para mudanças mais profundas. No entanto, existe um grande risco quando tratamos assuntos importantes como moda. Parafraseando Fernanda Young: “Quando a gente trata pautas importantes como moda, a moda passa e o velho persiste.” Espero sinceramente que o velho não persista após esse boom de representatividade que estamos vivendo.

No entanto, infelizmente, muitos assuntos relevantes têm sido tratados como modismos e monetizados por influenciadores e marcas, o que representa o lado negativo da internet, uma discussão bastante pertinente levantada no nosso filme. Apesar disso, acredito no potencial das redes sociais para promover mudanças significativas, desde que utilizemos essas plataformas de maneira consciente e profunda.

Cine Ninja: Como vocês conheceram o trabalho da @annavasof? Pode contar um pouco mais sobre a escolha das artes dela em alguns cortes?

Leandro Goddinho: Eu dou aula de cinema em duas universidades alemãs e convidei a Anna para dar uma masterclass para meus alunos. Em seguida, ela me convidou para dar aula para os alunos dela. Eu amo o trabalho da Anna Vasof, que é conhecido e respeitado no mundo inteiro, e fico muito feliz que ela tenha liberado algumas de suas obras para o nosso filme. Ela faz críticas profundas em relação ao uso excessivo de telas e internet em suas obras de arte, o que acredito que funciona como um ótimo contraponto no nosso documentário, que por vezes se propõe a ressaltar o lado positivo das redes sociais. As obras da Anna trouxeram um aprofundamento ainda maior para as nossas discussões.

Cine Ninja: A música dos créditos finais é composta por um violino que acompanha a câmera até o final de um túnel em direção a luz e que termina na área de trabalho de um computador. O intuito era deixar a sensação de estarmos presos em telas? Pode elaborar um pouco sobre isso?

Leandro Goddinho: Bom, nós já estamos todos presos às telas. Não tem escapatória. Eu desafio qualquer pessoa a passar um mês sem nenhum contato com telas. O que aconteceria? Seria praticamente como uma morte social. O historiador Yuval Noah Harari disse em uma entrevista ao Roda Viva que não precisar de telas é o novo símbolo de status. Se você não precisa usá-las, é porque você é muito importante e tem alguém fazendo isso por você. A dependência das telas é uma escravidão. Sem minhas telas, eu não consigo trabalhar, e consequentemente, não consigo pagar minhas contas, comer e ter vida social. Durante a pandemia na Alemanha, todos tiveram que baixar um aplicativo que deveria ser apresentado em qualquer estabelecimento, seja lojas, supermercados ou baladas, para ser escaneado e mostrar que as vacinas estavam em dia. Se eu estivesse na rua e a bateria do meu celular acabasse, simplesmente não poderia entrar em lugar nenhum. Pessoas mais velhas, que tinham dificuldades em lidar com tecnologia, tiveram que aprender na marra a utilizar os aparelhos.

A premissa do documentário é baseada em pesquisas que afirmam que passaremos mais da metade de nossas vidas em frente a telas. E, sinceramente, não acredito que haja um caminho de volta. O filme foi produzido antes do boom das IAs, algo que com certeza irá transformar a forma como vivemos nos próximos 10 anos, da mesma forma que os smartphones transformaram a década passada. A pergunta do filme sobre se existe luz no fim do túnel é uma provocação sem resposta. Existem muitos pontos de vista, tanto pessimistas quanto otimistas, em relação ao futuro, mas ninguém consegue prever como o mundo será daqui a 10 anos. A única coisa que sabemos é que as telas terão um papel decisivo nessa transformação.