Condições para ampliar terras indígenas, indenizar ocupantes e criar “reservas”
Depois de mais de dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do “marco temporal” das demarcações, rejeitando a tese pela qual só teriam direito ao reconhecimento oficial de suas terras os indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Depois de mais de dois anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento do “marco temporal” das demarcações, rejeitando a tese pela qual só teriam direito ao reconhecimento oficial de suas terras os indígenas que estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição. Na ausência da posse indígena nessa data e de comprovação de disputa judicial ou conflito em campo pela área (o chamado “esbulho renitente”), o STF considerou passíveis de indenização os títulos de propriedade incidentes nesses territórios, desde que seja comprovada a sua ocupação de boa-fé.
A Corte decidiu também que as terras indígenas já demarcadas podem ser ampliadas, em até cinco anos após a homologação, caso os seus limites tenham sido definidos sem considerar os critérios expostos no artigo 231 da Constituição, que trata dos direitos indígenas. Decidiu, ainda, que podem ser constituídas “reservas indígenas”, como compensação, em áreas não ocupadas tradicionalmente, quando for impossível a demarcação de suas terras tradicionais.
As teses aprovadas no julgamento foram redigidas em treze itens, que reproduzem disposições constitucionais e confirmam a capacidade dos povos indígenas de entrarem na Justiça em defesa de seus direitos e a compatibilidade das suas terras com a proteção ao meio ambiente, pois podem coexistir sobrepostas a unidades de conservação ambiental.
A decisão do tribunal é definitiva e tem caráter de “repercussão geral”, ou seja, deve ser aplicada a todos os processos de demarcação ainda não concluídos e como uma regra para os poderes Executivo e Judiciário. Embora não caibam recursos, é provável que as partes apresentem “embargos de declaração” para elucidar aspectos específicos da determinação final do Supremo, que deverá ser publicada após essa análise.
Congresso reacionário
Desde a promulgação da Constituição, o Congresso nunca aprovou leis para regulamentar os direitos indígenas. A Carta prevê uma lei ordinária para estabelecer as condições específicas para a pesquisa e a lavra de minérios em terras indígenas e uma lei complementar para regular exceções à nulidade e à extinção de atos incidentes sobre essas terras. O Senado chegou a deliberar sobre propostas de regulamentação, mas a Câmara dos Deputados não concluiu a sua tramitação.
Da mesma forma, a Câmara nada decidiu sobre outros projetos de lei, como o que institui o Estatuto dos Povos Indígenas, para adequar a Lei 6.001/1974 ( Estatuto do Índio) aos termos da Constituição, que superou o antigo instituto da tutela, anteriormente aplicado aos indígenas. Em 35 anos, diversas propostas de adequação deixaram de ser aprovadas pelos deputados.
Porém, quando o STF mostrou disposição para concluir o julgamento sobre o “marco temporal”, o Congresso, movido pela bancada ruralista, resolveu aprovar, a toque de caixa e sem discussão mais profunda em comissões técnicas, um projeto de lei para instituir restrições de direitos aos povos originários, cheio de inconstitucionalidades, inclusive o “marco temporal”.
Aberrações
Além dessa tese, o projeto pretende obrigar o contato forçado com grupos indígenas que vivem em isolamento voluntário, extinguir o direito indígena sobre terras ocupadas por garimpeiros ilegais e autorizar a abertura de estradas, a construção de hidrelétricas e de linhas de transmissão de energia em terras indígenas, independentemente de consulta aos povos originários. É uma tentativa de revogar direitos constitucionais por meio de uma lei.
O Congresso tem abdicado da sua função de mediar conflitos e votar leis consensuais. Deputados e senadores mobilizam-se para se apropriar do orçamento por meio de emendas e só conseguem aprovar leis na base do rolo compressor, em que maiorias fisiologicamente construídas votam sem debates. Mesmo assim, se insurgem contra decisões dos demais poderes que pretendam dispor sobre assuntos ignorados ou tratados de forma precária no Legislativo. Porte de drogas, aborto e outros temas tratados pelo STF estão motivando parlamentares conservadores a proporem emendas à Constituição para se contrapôr ao STF.
A estratégia de confronto com o Supremo deve fracassar. O projeto de lei do “marco temporal”, além da decisão do STF, terá de enfrentar o veto presidencial. Mesmo que o veto seja derrubado, caberia um novo recurso à Corte, que tenderia a reiterar a decisão e rejeitar outras ilegalidades. Até a aprovação de uma emenda constitucional prevendo a tese poderia fracassar, já que direitos fundamentais não podem ser afetados por maiorias eventuais.
Hora de governar
Mais do que legislar, o objetivo da bancada ruralista é impedir as demarcações. Apesar das condições estabelecidas, a decisão do STF viabiliza a continuidade delas. Após seis anos de paralisia, o presidente Lula homologou seis terras indígenas. Outras oito esperam pelos decretos de homologação e há outras mais, com demarcações concluídas, que o Ministério da Justiça deve enviar, em breve, para a Casa Civil.
A posição ruralista é um descaminho, pois a adoção do “marco temporal” deixaria vários grupos indígenas sem terras, situação não prevista pela Constituição. Os conflitos permaneceriam em aberto. A obstrução dos trabalhos do Congresso é um recurso legítimo da oposição, mas, no caso, não levaria a qualquer solução.
Para resolver, é preciso concluir as demarcações. Em três décadas, mais de 500 processos foram concluídos. Falta menos da metade disso, considerando processos já abertos na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Os ruralistas alegam que haveriam outras centenas, com base em falsas informações disseminadas pelo governo anterior, mas se trata de reivindicações que não têm a ver com o artigo 231 da Constituição.
Os processos pendentes concentram maiores dificuldades que, no entanto, podem e devem ser resolvidas. As teses aprovadas pelo STF dão mais instrumentos para essa solução. Com o tempo, as dificuldades só aumentam. O presidente Lula deve perceber isso e orientar os seus ministros, em especial a Casa Civil, para agilizar os processos e reparar, assim que possível, a dívida histórica do Brasil com os povos indígenas.