Para sempre, Léa Garcia
Uma voz pela luta antirracista, ela quebrou paradigmas como atriz negra e abriu caminhos para muitas outras
A dureza da atividade política é muitas vezes temperada com a possibilidade de conhecer, aprender, construir soluções. Para quem defende a cultura brasileira e o mar de talentos que a constrói, há recompensas que marcam a vida e engrandecem o espírito. Para mim, uma delas veio embrulhada no papel mágico da arte. Tive o privilégio de conhecer e conviver com Dona Léa Garcia. Embalada pelo sonho de ser escritora, ela mudou seu destino e o de muitos ao conhecer o Teatro Experimental do Negro. Foi ali, aos 16 anos, que teve início uma história de amor e de entrega aos palcos.
Quase três dezenas de peças. No cinema, 24 papéis. Na TV, foi Rarã, Clara, Edite, Dadá. Lola, Selma, Cida, Bastiana, Isabel, Natália, Sebastiana, Mariana, Mundica, Gladys, Aparecida, Chica, Flaviana, Duda, Lana, Rita, Rosa, Marlene, Leila, Elza, Luana, Serafina… Uma carreira invejável e premiada. Só ela sabia os percalços, as portas fechadas e o preconceito que enfrentou com dignidade, persistência e coragem.
Ainda a vejo no meio do palco, como personagem da maravilhosa peça “A vida não é justa”. Sentada numa cadeira simples, os pés firmes no chão, as mãos estendidas nos joelhos como que pedindo perdão e os olhos (que olhos!), entre apreensivos e envergonhados, ao ouvir a voz da juíza lendo e-mails trocados repletos de desejos inconfessáveis. Tinha então 89 anos. Nos prendia com a mesma força e carisma de sua juventude em seus primeiros passos na arte de atuar.
Uma potência. Uma voz pela luta antirracista. Ela quebrou paradigmas como atriz negra e abriu caminhos para muitas outras. E tudo com uma suavidade e uma delicadeza que nos fazia duvidar que tivesse enfrentado qualquer dificuldade na vida. E foram muitas! Mas parecia não ter fim sua vontade de prosseguir e nos encantar a cada papel.
No aniversário de 90 anos, a celebração foi repleta de amigos, parceiros de palco, filhos e muito amor, o que combinava com o sorriso de Léa. Ela se foi antes de receber mais um reconhecimento pela carreira. Seria homenageada no Festival de Cinema em Gramado. Na véspera, seu imenso coração lhe faltou. Não nos faltarão lembranças, inspirações e exemplos. São muitos e cabe a nós honrar cada um deles em sua memória. Dona Léa deixará mais do que uma enorme saudade. O vazio e a tristeza que sinto ao me despedir dela serão preenchidos com disposição redobrada para que o cinema, a TV e o teatro sejam cada vez mais um espaço da diversidade, despido de preconceitos, e com calorosa recepção de novos talentos. Trabalharei para que um dia, não muito distante, haja uma lei com seu nome alargando as portas para os negros e negras que trabalham e sonham com uma carreira nos palcos e telas. Para sempre, Dona Léa Garcia!