A Constituição caracteriza como “originários” os direitos territoriais dos povos indígenas e reconhece a sua precedência em relação a outras destinações dadas pelo poder público às terras do país. Ela também determina que a União demarque e proteja as terras tradicionalmente ocupadas por indígenas. Os direitos indígenas independem da demarcação, mas é ela que materializa, in loco, os limites das terras, evitando invasões e conflitos e, também, contribuindo para estabilizar a estrutura fundiária regional.

Segundo dados do Instituto Socioambiental (ISA), existem 734 terras indígenas oficialmente reconhecidas no Brasil. Dessas, 496 estão homologadas ou reservadas, com demarcações concluídas; 68 têm limites já reconhecidos, estão em processo de demarcação física ou pendentes de homologação; 45 têm limites identificados pela Funai que devem ser confirmados por portaria ministerial; e outras 125 estão em identificação pela Funai, inclusive algumas com presença confirmada de indígenas isolados.

Esse número poderá crescer com a inclusão de áreas com ocupação não confirmada de indígenas isolados ou por grupos “emergentes”, que voltam a se identificar como indígenas. Mas essas 734 terras constituem a demanda da quase totalidade da população indígena aldeada. Não devem ser confundidas com estas, outras demandas territoriais não afetas ao artigo 231 da Constituição, como, por exemplo, a de desapropriar áreas para fins compensatórios ou para acolher grupos indígenas urbanos.

Extensões

A extensão total das terras indígenas com limites definidos, incluídas as 113 já identificadas e aquelas em processo de demarcação, representa 13,5% do território nacional. Desta extensão, 98% está na Amazônia Legal Brasileira, onde vive 64% da população indígena aldeada. Os outros 36%, que vivem no sul, sudeste, nordeste e parte do centro-oeste, ocupam apenas 0,2% dessa extensão territorial.

A maior parte das 125 terras em identificação está situada fora da Amazônia e com extensões menores do que as já demarcadas no bioma. As pendências situadas na Amazônia referem-se a grupos menos numerosos, de povos isolados ou emergentes, sem equivalência, em extensão territorial, aos territórios já demarcados.

Significa dizer que é perfeitamente viável concluir o processo de demarcação das terras indígenas no Brasil, no que tange ao artigo 231 da Constituição, e que é provável que, uma vez concluído, a extensão total das terras indígenas alcance 14% do território nacional.

Porém, não por acaso, as pendências demarcatórias tardias se concentram em regiões com maior densidade de ocupação não indígena, mais sujeitas a conflitos, sobreposições de interesses e disputas judiciais. Por isso, suscitam fortes pressões políticas, exacerbadas por informações falsas, que superestimam as demandas territoriais indígenas para que pareçam insolúveis, visando paralisar as demarcações.

Processo legislativo

Foto: Pablo Valadares | Câmara dos Deputados

O caso mais radical decorre da aprovação do PL 490/2007 na Câmara dos Deputados, e que tramita no Senado Federal com o número 2903/2023. Ele é mais conhecido por pretender instituir o “marco temporal” de 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, para só demarcar terras indígenas para grupos que estivessem efetivamente ocupando-as naquela data, excluindo desse direito os que foram expulsos ou transferidos delas durante a ditadura, ou antes.

Mas o PL vai além da questão do “marco temporal”, que está sob julgamento no Supremo Tribunal Federal, e também estabelece limitações ao usufruto indígena e subordina o processo de demarcação das terras à aprovação do Congresso Nacional. Ou seja, vencidas as etapas da demarcação administrativa, o que já leva anos ou décadas, ela se converteria num processo legislativo, sujeito a injunções políticas e à inconclusão.

A identificação dos limites das terras indígenas, no âmbito da Funai, tem fundamento antropológico, e a decisão sobre os limites a serem demarcados, através de portarias do ministro da Justiça, tem fundamento constitucional, após o prazo para eventuais contestações de terceiros, pessoas ou instituições, públicas ou privadas. A portaria ministerial que define os limites pode ajustá-los, considerando outros direitos envolvidos, mas não cabe subordinar essa decisão a acordos políticos ou negociações escusas.

Indenização de títulos

Foto: Fábio Rodrigues Pozzebom | Agência Brasil

O ministro Alexandre de Morais, do Supremo Tribunal Federal, levantou outra proposta em seu voto proferido durante o julgamento – ainda em curso – sobre a tese do “marco temporal”. Ele rejeita a tese, mas propõe a indenização por títulos de propriedade legítimos, incidentes em áreas a serem demarcadas. Segundo ele, uma justa e necessária reparação, devida pelo poder público aos titulares e ocupantes de boa fé.

Porém, o que deveria se restringir à relação entre poder público e terceiros, pode acabar prejudicando a efetividade e a precedência dos direitos territoriais indígenas. O próprio Moraes falou em “indenização prévia”, que postergaria a efetiva posse indígena à conclusão da pendência administrativa ou judicial entre a União e terceiros.

O julgamento no STF deve prosseguir em agosto e ainda não se sabe se a proposta de Moraes irá prosperar. Mesmo assim, a relatora do mencionado PL no Senado, Soraya Thronicke (Podemos/MS), já declarou que pretende incorporá-la ao varal de maldades aprovado na Câmara. O próprio Senado já havia aprovado em 2015, por unanimidade, uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 71/2011) para instituir essa indenização, mas a Câmara a descartou em troca da PEC 215, outro projeto inconstitucional.

Foto: Frederico Viegas | ISA

“Grupão”

O presidente Lula criou o Ministério dos Povos Indígenas, nomeou representantes do movimento indígena para as funções públicas mais importantes relacionadas às suas demandas e se propôs a levar adiante as demarcações. Em abril, homologou seis terras, retomando o processo paralisado há mais de seis anos. Ainda são esperadas outras oito homologações, que chegaram a ser anunciadas, mas não foram efetivadas, supostamente por decisão do ministro Rui Costa, da Casa Civil.

Pode ser que a intenção de Costa seja dosar as homologações para administrar pressões políticas, na contramão do que ensina Maquiavel. Mas também pode ser que ele pretenda alterar, ou fazer retroceder, processos que já superaram a etapa da decisão de limites e de demarcação física, com investimento de recursos públicos. Protelar a conclusão de processos que chegaram à fase de homologação só contribui para aumentar a agonia dos envolvidos e o clima de conflito no local.

Também ficou a impressão de que Costa não se empenhou para manter, resgatar ou mediar a competência do Ministério dos Povos Indígenas para declarar limites de terras indígenas – constante da medida provisória que deu conformação ao governo Lula, mas reatribuída ao Ministério da Justiça por decisão da Câmara, a que Costa se conformou, sem a proposição de destaques, vetos ou contestação judicial.

Agora circulam boatos, não confirmados, de que o protagonismo técnico-jurídico do Ministério da Justiça na definição de limites não agrada a Casa Civil, que pretende subordiná-los a um “grupão interministerial”, e a interesses adversos aos direitos indígenas, que passariam a poder obstá-los e descumpri-los. Esse formato de grupão já foi adotado durante o Projeto Calha Norte, para impedir ou reduzir demarcações.

Aos finalmentes

O Brasil, sob a égide da Constituição, já resolveu grande parte da demanda para a demarcação das terras indígenas. As já homologadas acolhem grande parte da população aldeada. As demarcações resolveram ou reduziram situações de conflito e mitigaram injustiças históricas. Apesar da natureza mais complexa das pendências demarcatórias, quem já resolveu a maioria delas agora pode acabar com o passivo de demarcações, desde que disponha de instrumentos legais, recursos e protagonismo das comunidades.

No entanto, apesar da inequívoca determinação constitucional, os poderes da República parecem estar mais preocupados em retardar, dificultar ou impedir a conclusão do processo demarcatório e a efetividade plena daquela determinação. Essa aparente distorção reflete o aumento relativo do poder de pressão dos interesses contrariados pelos processos de demarcação, associado ao desconhecimento das informações qualificadas sobre a natureza e a extensão das demandas pendentes, conforme estão oficialmente listadas.

Pode ser que a natureza dessas demandas pendentes requeira novas providências, como esforços concentrados da Advocacia Geral da União (AGU) para destravar processos judicializados, ou a criação de instrumentos legais e administrativos – como seria a indenização de títulos, mas todos esses instrumentos deveriam ser formatados e usados para resolver as pendências e concluir os processos. O ônus civilizatório da não solução já foi muito além do inevitável.