Retrocesso no avanço: criminalização de indígenas na Bahia
A incidência contra o Marco Temporal das Terras Indígenas e sua vinculação a indenização prévia é estritamente importante para arrefecer os conflitos armados e a criminalização contra os indígenas nos territórios
Por Lahara Carneiro e Wagner Moreira
A nível nacional, o início de um governo atento às questões que permeiam as vivências dos povos originários a ponto de instituir, pela primeira vez, o Ministério dos Povos Indígenas, fez surgir uma onda de esperança de que os conflitos com relação à retomada dos territórios se arrefecessem. Também pela primeira vez, um governador autodeclarado indígena foi eleito no Brasil: Jerônimo Rodrigues, na Bahia.
Mas com o avanço de reivindicações históricas do movimento, ruralistas têm se organizado e articulado a criminalização desses povos. Na Bahia, estado com a segunda maior população indígena recenseada do Brasil, as comunidades localizadas no extremo sul do estado têm visto os conflitos que envolvem a retomada dos territórios se acirrarem. Desde março do último ano, ao menos seis indígenas foram mortos a tiros no sul e extremo sul do estado. Entre eles, dois adolescentes.
Segundo relatório recente da Rede de Observatórios da Segurança, o estado é o segundo do país com maior número de crimes contra povos tradicionais. Só no ano de 2022 foram registrados cerca de 230 casos no território baiano. Mais da metade (52,2%) verificada em seis municípios: na capital, Salvador; em Banzaê, cidade do norte da Bahia marcada pela luta do povo Kiriri; além de Porto Seguro, Pau Brasil, Ilhéus e Itaju do Colônia. Estas quatro últimas são do sul e extremo sul do estado, região que concentra grande parte da população indígena da Bahia e a maioria dos conflitos.
A intensificação dos conflitos no sul do estado começou em junho do ano passado, quando os Pataxós ocuparam terras que reivindicam como território indígena, em 16 pontos de acampamento. Entre as áreas ocupadas, estão terras que já foram aprovadas ou reconhecidas, mas ainda aguardam passar por todos os trâmites legais para serem demarcadas.
Milícias rurais e campanhas difamatórias no extremo sul
Em março deste ano, nove entidades – entre elas a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) – enviaram um relatório à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) alertando sobre as “investidas dos fazendeiros e milicianos” no sul baiano e que por isso cerca de 12 mil Pataxós estão vivendo sob uma “guerra de baixa intensidade”.
O relatório aponta que as ações são promovidas de forma organizada, com “uma cadeia de comando que conta com apoiadores, vigilantes, executores, mandantes e possíveis financiadores”. Entre eles, policiais militares que prestam serviços privados para fazendeiros.
Quatro PMs já foram presos por suspeita de participarem dos três últimos homicídios cometidos contra os jovens indígenas Pataxós. A APIB afirma que “a população reconhece o envolvimento de policiais na milícia, articulados com fazendeiros bolsonaristas que têm realizado manifestações contra os indígenas e espalhando notícias falsas para difamar a legitimidade do movimento.”
O Ideas Assessoria Popular esteve presente no 5º Acampamento dos Povos Indígenas da Bahia e conversou com Ricardo Oliveira, também conhecido como Xawã Pataxó, Secretário de Desenvolvimento Indígena do município do Prado e liderança da Aldeia Kaí. Para ele, a desinformação por parte dos veículos de comunicação locais é constante.
“Algumas rádios do município de Itamaraju e de municípios circunvizinhos criminalizam os povos indígenas”, afirma.
De acordo com Ricardo, os programas de rádio tentam jogar a sociedade contra a luta indígena durante programas que ocupam cerca de uma a três horas da programação diária.
“Isso sem falar nos grupos anônimos de WhatsApp, onde corre a maioria das mensagens com preconceito, textos falando da luta sem nenhum conhecimento, áudios… Enfim, é [também] uma guerra virtual.”, complementa.
A liderança indígena também destaca a desinformação propagada por veículos nacionais.
Incidência política: Frente Parlamentar Movimento Invasão Zero
De acordo com a CNN, cerca de 800 fazendeiros estão listados enquanto integrantes de um grupo denominado Movimento Invasão Zero. Eles estão distribuídos em 130 dos 417 municípios baianos e visam combater a ocupação de terras por povos indígenas, do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e Sem Teto (MTST). Representantes do Movimento estiveram no Congresso para tratar da CPI do MST que estava para ser iniciada.
Apesar da “Comissão Parlamentar Mista de Inquérito ser destinada a investigar a atuação do Grupo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), assim como dos seus financiadores” e escancarar o processo de criminalização a um dos maiores e mais influentes movimentos sociais da América Latina, as consequências dessa criminalização também recaem sobre os povos originários que adotam a ação direta das retomadas como forma de pressionar a demarcação das suas terras.
Marco Temporal
Os conflitos seguem ainda mais acirrados após a retomada do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, que discute o chamado Marco Temporal no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF). Após o voto do ministro Alexandre de Moraes, que se manifestou contra o Marco Temporal para demarcação dos povos indígenas, mas vinculou a indenização prévia aos ruralistas que ocupam os territórios indígenas. O que, na prática, inviabiliza a homologação e a desintrusão dos territórios indígenas, frente aos parcos recursos destinados às políticas e órgãos indígenas, a exemplo da Fundação dos Povos Indígenas (Funai).
Na medida que se distanciam de uma resolução real nas instâncias federais do Legislativo e Judiciário, os conflitos seguem ainda mais acirrados nos territórios. E a tônica daqueles que detêm as regras do jogo, “o poder econômico e político”, é a criminalização dos povos originários através do financiamento de fake news e do racismo convenientes a sua construção narrativa.
Um exemplo é o documentário encomendado pelo Sindicato dos Ruralistas dos municípios de Ilhéus, Una e Buerarema que financiam a construção narrativa da criminalização de algumas das principais lideranças indígenas da Bahia e do Brasil.
Uma delas é Cacique Babau, também conhecido como Rosivaldo da Silva, liderança dos Tupinambás de Olivença. Mas o Cacique não desanima diante das ações de fazendeiros e políticos.
Para ele, “o congresso cria cada vez mais impasses para gerar mais violência na base. […] Quando eles criam o Marco Temporal, no formato que se criou, ‘nós entristece’? Não. Nossa luta apenas vai ficar melhor e maior. E que venha o Marco Temporal pra gente guerrear contra ele!”, destaca Babau.
A incidência contra o Marco Temporal das Terras Indígenas e sua vinculação a indenização prévia é estritamente importante para arrefecer os conflitos armados e a criminalização contra os indígenas nos territórios. Não ao Marco temporal e a violência contra os povos originários!
Lahara Carneiro tem formação em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo, integra o IDEAS Assessoria Popular e a equipe técnica do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas da Bahia como comunicadora e coordenadora de pesquisa sobre Segurança Pública.
Wagner Moreira tem formação em Direito, mestre e doutorando em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA, co-fundador do IDEAS Assessoria Popular e coordenador geral do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas da Bahia.