CAR de cartório
Sem verificação e validação dos dados, a inscrição de propriedades no CAR foi se reduzindo a um registro numa espécie de cartório paralelo, que supostamente atesta, sem testar, a sua regularidade com a legislação ambiental
Na semana passada, ao votar a Medida Provisória (MP) 1.154/2023, que institui a estrutura dos ministérios no atual mandato presidencial, a comissão mista, formada por deputados e senadores, decidiu retirar órgãos e atribuições do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Entre elas, a de gerir o Cadastro Ambiental Rural (CAR), que foi transferida para o Ministério de Orçamento e Gestão. Nesta semana, a MP foi apreciada pelos plenários da Câmara e do Senado.
O CAR foi instituído em 2012, como uma espécie de compensação à reforma do Código Florestal de 1965, que enfraqueceu a proteção das florestas em áreas privadas e anistiou a maior parte dos passivos ambientais acumulados durante a sua vigência. A narrativa então construída foi a de que, dali para a frente, o CAR seria um instrumento vivo, orientador dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs) estaduais e da aplicação efetiva da lei reformada no chão.
Porém, o Código Florestal voltou a ser alterado outras sete vezes desde 2012, com sucessivos adiamentos do prazo para a efetivação do CAR e dos PRAs. Sem verificação e validação dos dados, a inscrição de propriedades no CAR foi se reduzindo a um registro numa espécie de cartório paralelo, que supostamente atesta, sem testar, a sua regularidade com a legislação ambiental. Embora não devesse ser confundido com um cartório patrimonial, o registro no CAR tem sido usado para subsidiar a grilagem de terras públicas.
Gestão paralítica
O Senado foi praticamente obrigado a referendar a decisão da Câmara sobre a MP 1.154, pois se esgotou o prazo de 120 dias para a aprovação da medida, sem a qual a estrutura de governo seria derrubada, passando a vigorar a do governo anterior. É pouco provável a ocorrência de vetos presidenciais e a viabilidade de eventuais recursos ao STF.
Outros ministérios também foram afetados, como o do Desenvolvimento Agrário, com a transferência da gestão da política de preços mínimos para a Agricultura, e o dos Povos Indígenas, com a atribuição à pasta da Justiça, da declaração de limites das Terras Indígenas. O MMA também perdeu a Agência Nacional de Águas (ANA) e a gestão da política de gestão dos recursos hídricos, para o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. Além do CAR, outros sistemas de informações relevantes para a política ambiental também foram transferidos para a pasta da Gestão.
Porém, o Ministério da Gestão tem como foco o funcionamento da máquina federal, bastante debilitado nos últimos anos. Sua tarefa é gigantesca e não tem a ver com bases de dados públicos, o que é um equívoco básico. Ele não dispõe de instrumentos e de quadros para gerir dados ambientais. É previsível que essas bases, inclusive o CAR, se tornem estáticas, descoladas das políticas que lhes dão sentido.
Serviços socioambientais
O relator da MP 1.154 na Câmara, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), entende que a vinculação do CAR e de outras bases de dados ambientais no Ministério da Gestão foi uma opção intermediária, já que a bancada ruralista pleiteava a sua subordinação à Agricultura. Também considerou-a “técnica”, contra o suposto viés político que lhes poderiam dar tanto o Meio Ambiente quanto a Agricultura.
Mas a questão não é essa. Todos esses dados são públicos e podem ser usados por organizações públicas e privadas como lhes aprouver. A questão é que o CAR foi instituído pelo Código Florestal para operar como instrumento da política florestal. A questão é de funcionar ou de não funcionar. E para servir à política florestal, o CAR deveria estar sendo gerido pelo Serviço Florestal Brasileiro (SFB), no âmbito da política ambiental.
Com a estagnação do CAR, e sem prejuízo do uso dos dados nele disponíveis, o MMA deve avaliar a viabilidade de construir, no âmbito do SFB, uma base de dados de ativos ambientais efetivamente existentes em terras públicas e privadas, para subsidiar projetos de pagamento por serviços ambientais e a sua inserção no mercado de carbono ou em programas oficiais que visem a redução do desmatamento e à gestão de estoques florestais.