Descolonizar o financiamento da educação: tirar o Fundeb do arcabouço fiscal é crucial, mas é só primeiro passo
O debate sobre financiamento da educação e uma inversão da lógica desse financiamento é mais amplo e mais profundo. E estamos na maior mobilização pela educação do planeta discutindo esse tema. Vem que eu te explico!
Infelizmente, na semana passada foi votado o arcabouço fiscal em regime de urgência na Câmara dos Deputados e o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, o Fundeb, entrou debaixo do teto do arcabouço e parece que para os deputados está tudo bem, mais uma vez, temos um orçamento completamente comprimido. Esperamos que o Senado Federal reverta esse desrespeito com a população. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a Associação de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), que integra o Comitê Diretivo da Campanha, publicaram posicionamento conjunto nesta semana explicando a ameaça que manter o Fundo no teto representa. Convido à leitura.
Acontece que o debate sobre financiamento da educação e uma inversão da lógica desse financiamento é mais amplo e mais profundo. E – não coincidentemente – estamos na maior mobilização pela educação do planeta discutindo esse tema. Vem que eu te explico!
A Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em 2023, completará 25 anos de atuação. Neste um quarto de século, fizemos muito pelo direito à educação dentro e fora do Brasil. A Semana de Ação Mundial (SAM) é uma de nossas maiores mobilizações e chega à 19ª edição, envolvendo mais de 2,2 milhões de pessoas em território nacional.
Este ano, tão importante para nós, é também essencial para a educação no mundo e no nosso país e eu vou contar aqui um pouco do porquê.
Vamos começar pela arena internacional. O Transforming Education Summit (TES) – em português, Cúpula da Educação Transformadora – aconteceu em setembro de 2022, na Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, em resposta a uma crise global na educação – de equidade, inclusão, qualidade, acesso e financiamento. A cúpula proporcionou a oportunidade para elevar a educação ao topo da agenda política global e mobilizar ação, ambição, solidariedade e soluções para recuperar as perdas relacionadas com a pandemia.
É claro que, como todo debate político, uma série de interesses – muitos inclusive privados – atravessaram a Cúpula. Contudo, algo inédito aconteceu, a partir de esforços da sociedade civil organizada, especialmente aquela unida na Campanha Global pela Educação, coalizão internacional da qual fazemos parte e somos cofundadores. Conseguimos aprovar um documento muito avançado em termos de financiamento da educação, tema do eixo 5 da Cúpula.
Tive a oportunidade de contribuir com a construção deste documento por integrar (representando a Campanha Brasileira) a coordenação global da Consulta Coletiva de ONGs (CCNGO) junto à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), organismo oficial que reúne a sociedade civil na construção, monitoramento e avaliação do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 4, sobre Educação, dentro da principal agenda global vigente hoje, a Agenda 2030.
Não à toa, tamanho o avanço desse documento – ainda que não seja perfeito, obviamente – sua agenda se torna, em 2023, a base temática da nossa maior mobilização pela educação.
Para garantir um sistema educacional público e gratuito fortalecido é necessário mais e melhor financiamento. É essa a demanda da Campanha Global pela Educação e também a nossa no Brasil. Por isso, convocamos o poder público para assumir o compromisso da área temática de educação, convocado pelo Transforming Education Summit, realizado em 2022, e que estabeleceu uma agenda transformadora a partir de cinco estratégias de ação:
• AÇÃO SOBRE TRIBUTAÇÃO: aumentar as equivalências tributárias em relação ao Produto Interno Bruto (PIB) por meio de reformas tributárias progressivas e mudar a forma como as regras são definidas no mundo.
• AÇÃO SOBRE A AUSTERIDADE: as políticas de austeridade e contenção sugeridas pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial da massa salarial do setor público são o maior obstáculo para os salários e recrutamento de professores, além de comprimir os recursos financeiros das áreas sociais
• AÇÃO SOBRE A DÍVIDA: países que gastam mais com o pagamento das dívidas do que com educação devem estar na liderança para seu cancelamento ou sua renegociação. Precisamos de novos mecanismos!
• AÇÃO SOBRE PARADIGMAS: para que o Ministério da Economia assuma que os recursos financeiros aplicados em educação sejam especificados como investimentos que fazem parte da formação do patrimônio da Nação.
• AÇÃO DE DIREITOS ESPECIAIS DE SAQUE: que o Ministérios da Fazenda realize um aumento dos recursos aplicados em educação pela emissão de “direitos especiais de saque”, como foi feito durante a Covid-19.
Ou seja, os Estados devem financiar adequada e suficientemente a educação, usando o máximo de recursos disponíveis, sejam eles internos contínuos (impostos, contribuições, taxas, fontes de aplicação financeiras, royalties, empréstimos entre outros), externos (cooperação internacional), ou parte de outras fontes obtidas por meio de reformas econômico-financeiras, como reforma tributária progressiva, dentre outras.
Nossa mobilização da SAM em 2023, contextualizada na realidade do Brasil, foca na defesa:
• da construção de um novo Plano Nacional de Educação (PNE), que não retroceda em relação à lei atual, mas que seja ousado para recuperar os últimos anos de desinvestimentos e descumprimento do PNE atual;
• da garantia de financiamento adequado e justo da educação pública brasileira: conforme a Constituição Federal de 1988, a partir da função supletiva e redistributiva da União e dos Estados, devem ser promovidas medidas de redistribuição dos recursos financeiros para universalização do padrão mínimo de qualidade, garantindo as condições adequadas de oferta, combate ao analfabetismo, à discriminação e às demais desigualdades educacionais e apoio aos sistemas de ensino, tendo como referência os parâmetros do Custo Aluno Qualidade (CAQ), que deve ser regulamentado;
• da aprovação e implementação de um Sistema Nacional de Educação com cooperação federativa, com colaboração entre os sistemas de ensino, gestão democrática na composição de suas instâncias decisórias, em processos e atribuições; tendo por parâmetro o Custo Aluno-Qualidade (CAQ), que prevê insumos para garantia de condições adequadas de oferta em nossas creches e escolas, a fim de concretizar o oferecimento de padrões de qualidade na educação básica com justiça federativa e financiamento adequado;
• da regulamentação e implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) para que promova a equidade e a participação das comunidades escolares nos processos avaliativos das escolas e das políticas educacionais abrangendo as diretrizes de universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade, valorização dos profissionais da educação, gestão democrática e superação das desigualdades educacionais;
• do fortalecimento da educação pública e gratuita, pela regulamentação do setor privado, conforme os Princípios de Abidjan e contra a privatização e mercantilização da educação, etapas e modalidades;
• da plena regulamentação e implementação do novo e permanente Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), com financiamento adequado, especialmente para a Educação Infantil, Educação de Jovens e Adultos, Educação do Campo, Educação Especial, Educação Quilombola e Indígena e dos territórios com maioria de população negra, por meio do estabelecimento de fatores de ponderação e indicadores justos que corrijam as desigualdades nas etapas e modalidades educacionais e desigualdades raciais e sociais, bem como a progressiva exclusividade da aplicação de seus recursos na educação básica pública;
• da revogação da Emenda Constitucional 95/2016, do Teto de Gastos, com a retomada do investimento público adequado em políticas sociais e ambientais, além do fortalecimento dos instrumentos de planejamento público de curto, médio e longo prazo;
• da implementação plena da Lei do Piso Salarial Nacional Profissional do Magistério Público, por garantia de remuneração condigna, de planos de carreira, de formação inicial e continuada e de condições adequadas de trabalho para as(os) profissionais da educação;
• da defesa da recomposição, ampliação e execução orçamentária total dos recursos educacionais nos âmbitos federal, estadual, distrital e municipal, fortalecendo o papel do Ministério da Educação (MEC), com garantia de orçamento para promoção de uma educação integral, inclusiva, antirracista e antidiscriminatória, de superação das desigualdades e de promoção das diversidades de gênero, orientação sexual, raça, cor, etnia, idade, e origem;
• da democratização do debate sobre financiamento da educação com a sociedade;
• do cumprimento com os compromissos assumidos internacionalmente sobre a garantia do direito à educação junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e a Organização das Nações Unidas (ONU), sobretudo no que diz respeito:
a) aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis (ODS);
b) às recomendações ao Brasil da Revisão Periódica Universal, do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (RPU/ONU);
c) às mais recentes recomendações do Conselho sobre os Direitos das Crianças ao Brasil (CRC/C/ BRA/CO/2-4); e
d) às mais recentes resoluções sobre educação para o desenvolvimento sustentável (A/ RES/74/223), direito à educação (A/HRC/RES/47/6) e direito à educação de meninas (A/HRC/ RES/47/5) aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas.
Por falar em tirar compromisso do papel… Vamos falar agora sobre o assunto nacional: o Plano Nacional de Educação 2014-2024 entrará em seu último ano de vigência – sem ter saído do papel. Não vou me aprofundar aqui nos motivos pelos quais ele não foi implementado, para não dar “spoilers”, mas trago aqui a importância de atentarmos para o fato grotesco de que a espinha dorsal da educação brasileira foi não só escanteada, como vimos uma série de políticas serem construídas e implementadas na contramão do que preconiza nossa Lei. É gravíssimo!
Nosso maior desafio é construir um novo Plano Nacional de Educação com mecanismos de implementação efetivos, sem retroceder naquilo que conquistamos e avançando no que ainda não foi alcançado. E ele está diretamente ligado à descolonização do financiamento da educação.
Não disse que esse seria um ano importante para nós que defendemos o direito à educação?
Por isso, clamamos:
Para não retroceder: PNE pra Valer As desigualdades enfrentar, o financiamento descolonizar!
Superar esses desafios é possível somente com você, com a mobilização de todas e todos, em torno desse compromisso. Contamos mais uma vez com a ampla participação para fazermos acontecer a educação pública que queremos e defendemos, sem retrocessos e com ousadia!