Olhar é um ato violento
O problema da foto de Lula sendo “alvejado”, resultado de uma múltipla exposição, não é a foto evidentemente, mas o contexto
Quando vi a imagem do presidente Lula levemente abaixado com um estilhaço de vidro sobre o coração, a foto de Gabriela Biló na 1ª página da Folha de São Paulo neste dia 19/01/2023, imediatamente pensei: que foto perturbadora e também extraordinária.
E logo imaginei o momento singular captado pela fotógrafa em que Lula teria passado na frente das vidraças estilhaçadas do Palácio do Planalto, baixou o rosto e se curvou para “ajeitar a gravata”, como se sentisse o impacto de um golpe. Um “instante decisivo” que muda todo o sentido do que vemos, como diria o mestre Cartier Bresson.
Lendo a legenda, vi que a fotografia não foi um “acaso”, mas um efeito desejado, produzido por uma dupla exposição. As fotomontagens ou superposições de imagens são um processo legítimo e incrível. Em 2022, eu mesma organizei uma exposição, do artista Arthur Omar, toda realizada com superposição de imagens do Afeganistão, com resultados poéticos e políticos que sem as superposições não poderíamos ver. Aqui o resultado que produz imagens que são como visões oníricas e documentais ao mesmo tempo:
A história da fotografia e do fotojornalismo criam realidades, eis o sentido da arte, mas não se pode mais pensar o mundo contemporâneo sem perguntar pela política e pela ética dessas mesmas imagens. Nos últimos 4 anos, as imagens ajudaram a construir narrativas infernais e deram credibilidade as fake news e teorias conspiratórias da extrema-direita.
O problema da foto de Lula sendo “alvejado”, resultado de uma múltipla exposição, não é a foto evidentemente, mas o contexto. O uso da foto de Lula é o que chamamos de imagem “editorializada”, uma foto editorial da Folha de São Paulo, que expressa e escancara todo risco e todo nosso horror diante da possibilidade de um novo ataque ao Presidente da República pelos extremistas que tentaram um golpe no domingo do dia 8 de janeiro de 2023.
As imagens de devastação e as vidraças quebradas do Palácio do Planalto nos atingiram na sua tentativa real e simbólica de ataque e ameaça a Lula e a democracia, um ataque que felizmente fracassou, mas produziu milhares de imagens.
Ao “realizar” na imagem da fotógrafa Gabriela Bilo o objetivo presumível dos golpistas e de todo o discurso da extrema direita – eliminar, atingir, destruir e no limite “assassinar” Lula – a Folha de São Paulo tem que estar ciente do trauma e da indignação que pode provocar.
A foto tem um impacto imediato e literal, sensorial, como as inúmeras imagens do ativismo que apontam para os aspectos infernais, demoníacos, patéticos da figura de Bolsonaro, podemos chamar de fotografia ou de design ativismo essa disputa de imaginário.
O problema definitivamente não é a foto, mas seu uso. Sim a fotografia pode ser lida como uma blindagem e resistência, como pensou a fotógrafa Gabriela Biló: Lula “sorri” e se recompõe do ataque, uma imagem de resistência. E foi o que aconteceu.
O Presidente da República saiu mais forte da tentativa de golpe, conseguiu o apoio de todos os governadores do país, apoio internacional, exonerou militares e segue “arrumando a casa” e blindando a democracia, nesse início de governo. Mas como “ancorar” e afirmar esse sentido da imagem? O texto da matéria da Folha não ajuda.
A fotografia não tem nada a ver com a manchete da Folha: “No foco de Lula, presença militar no Planalto é recorde”. Na imagem Lula é que é “o foco” , o alvo, de quem? Dos militares? Dos extremistas? Lendo o texto poderíamos justificar a foto como um “alerta” para a ameaça que Lula corre mantendo militares em cargos do governo ou no órgão responsável pela proteção do presidente e do Palácio do Planalto.
Uma foto-choque, uma foto-bala, sensacional e sensacionalista. A Folha errou? A Folha arriscou e publicou uma foto com mensagens controversas e dúbias, passível de muitos mal entendidos, sem o devido cuidado simbólico em um momento ainda muito sensível e mesmo traumático.
Por outro lado, o Brasil precisa sair da leitura literal das imagens, reduzidas a sua obviedade. Ler de forma literal foi o que a extrema direita fez com as obras da exposição do “Queermuseu” , denunciadas como apologia a pornografia e a pedofilia.
Dizer que a Folha de São Paulo estimula o assassinato de Lula e o golpismo com essa imagem me parece sintomático de nosso medo e trauma. Mas sim a imagem pode ser lida dessa forma óbvia e literal.
“Olhar é um Ato Violento”, a frase é do fotógrafo, Arthur Omar, sobre quem olha e como podem se sentir ameaçados os que são olhados, os “alvos” das câmeras fotográficas, dos vídeos, das milhares de imagens que nos expõe na midioesfera.
A montagem de Gabriela Biló nos atinge em nossa insegurança, nosso trauma, nesse início de felicidade democrática ameaçada. “Olhar é um Ato Violento, mas também infinitamente sutil”, completamos a frase.
Depois da imagem extraordinária e catártica da posse de Lula, de Ricardo Stucker, subindo a rampa com a multidão ao fundo, que sobe junto dos oito brasileiros escolhidos para representar a nossa mais potente diversidade, ver uma fotografia editorializada “realizar” nossos piores pesadelos é angustiante.
As imagens tem poder e devemos cuidar do imaginário. Acabamos de viver em um governo que violentou corpos, minorizados, violentou a democracia, vivemos uma guerra de memes e imagens. A blindagem de vidro estilhaçada sobre o coração do Presidente eleito nunca mais será “só uma foto” na capa do jornal.