Remanescentes desumanos
Há responsabilidades políticas a serem cobradas no assassinato de Dom e Bruno
A última semana foi fortemente marcada pela catártica dor causada pela confirmação do assassinato de Bruno Pereira e de Dom Phillips, nas proximidades da Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas. Três dos autores do crime estão presos, um deles confessou e outro se entregou à polícia. Fala-se de mandantes ligados ao narcotráfico e há responsabilidades políticas a serem cobradas. A Polícia Federal vacila em aprofundar as investigações, que o presidente Bolsonaro, em plena campanha reeleitoral, quer encerrar.
Entre abjetas aberrações proferidas por Bolsonaro, tentando responsabilizar as vítimas pelo próprio assassinato, coube ao ministro da Justiça, Anderson Torres, informar, oficialmente, sobre a localização dos corpos, chamados por ele de “remanescentes humanos”. O malabarismo verbal ministerial deveu-se à circunstância de que Bruno e Dom, depois de mortos, tiveram os seus corpos esquartejados. A extrema brutalidade do crime inspirou a licença poética do ministro.
O que remanesce dessa história cheira muito mal para Torres, Bolsonaro e ideólogos das Forças Armadas, que recorrem à defesa retórica da soberania nacional para atacar os críticos às políticas do governo para a Amazônia, os povos indígenas, os direitos humanos, as mudanças climáticas, etc. O mundo inteiro assistiu um filme de horror em tempo real, num território sem lei, num país desgovernado, com enredo determinado pelo crime organizado.
Defesa de quem?
Durante o período democrático recente, o Brasil fez investimentos consideráveis para aumentar o controle militar sobre as fronteiras. Várias unidades do Exército foram transferidas de outras regiões para a Amazônia e um colar de batalhões foi instalado ao longo da fronteira norte. O Projeto SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia), com a instalação de potentes radares em pontos estratégicos, deveria permitir o controle do espaço aéreo regional. A Marinha também teve a sua estrutura reforçada em algumas áreas, inclusive no Alto Solimões.
O artigo 17-A da Lei Complementar nº 97/1999, assim dispõe sobre o exercício o poder de polícia na da faixa de 150 km ao longo das fronteiras nacionais: “Cabe ao Exército Brasileiro, além de outras ações pertinentes, […]: IV – atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, […]”. São atribuições afetas a vários dos casos recentes de violência ocorridos em Rondônia, Roraima e, também, no Javari.
Por isso causou espanto a nota emitida pelo Comando Militar da Amazônia, logo após o desaparecimento do Bruno e do Dom, dizendo que ainda aguardava “ordens superiores” para reagir ao fato. Pareceu uma forma de dizer que havia alguma ordem para não agir. É a Polícia Federal quem lidera as investigações, não há inteligência militar suficiente para isso.
A postura do Ministério da Defesa tem gerado críticas e suspeitas de desvio de função. Enquanto se deixa usar em movimentos estranhos que questionam o sistema eleitoral, vai dando sucessivas demonstrações de leniência diante da atuação do narcotráfico, do garimpo predatório e de outras empresas criminosas na Amazônia. O Alto Comando parece não perceber, ou não se importar, com o desgaste que essa situação gera junto aos melhor informados.
Resistência à mudança
O remanescente mais desumano é o próprio Bolsonaro. Ele consegue desumanizar quase um terço da população. Mas, para isso, cristaliza a sua rejeição pelos outros dois terços. Da sua boçalidade, o povo brasileiro poderá se livrar nas eleições de outubro. Esse passo será fundamental para impedir que o país se afunde de vez, multiplicando remanescentes humanos.
Este será apenas o primeiro passo. A violência é resiliente. O crime organizado vai remanescer e tentar manter a soberania conquistada sobre grande parte da Amazônia durante o governo Bolsonaro. O crime está armado e capitalizado. Para reverter essa situação, será preciso estratégia, inteligência e perseverança para cortar as suas conexões internas e internacionais. Enquanto isso, a violência poderá se intensificar ainda mais no curto prazo.
Sob novo governo, com comandos militares renovados, haverá oportunidade para rever a atual estrutura de defesa, que tem sido lenta e pouco efetiva em evitar, ou reagir, aos ilícitos amazônicos. Mas a experiência dos anos recentes demonstra que remanesce, nas Forças Armadas, uma cultura política corporativa completamente desatada dos desafios civilizatórios deste século.
Não é a existência da floresta e a presença dos povos indígenas que abalam a soberania brasileira sobre a Amazônia. Não é crível que governos de países vizinhos se atrevam a ameaçar nossas fronteiras. O abalo vem da demonstração da incapacidade do país em gerir a região de forma racional, do avanço descontrolado do desmatamento e da mineração predatória, da grilagem de terras públicas e da ação do crime organizado. Além de lesar o país, a predação da Amazônia afeta objetivamente o mundo todo.
O resgate da soberania nacional na Amazônia não precisa de retórica vazia, mas depende da demonstração da capacidade efetiva do país de combater os ilícitos e de privilegiar o desenvolvimento sustentável em detrimento da predação dos recursos naturais. Depende do protagonismo dos povos da floresta, ameaçados e encurralados no atual ciclo de violência. E se completa com o justo reconhecimento internacional.