Cúpula das Américas demonstra fraqueza
Acordo sobre migração não veio acompanhado de qualquer iniciativa de escala para superar a crise social e econômica que assola o continente
Como potência mundial, os EUA deveriam zelar melhor pelas Américas, seu continente, sua retaguarda. Talvez tenha sido esta a impressão que o presidente Joe Biden pretendia transmitir com a reunião da Cúpula das Américas, em Los Angeles, na semana passada. O acordo que resultou dela, sobre migração, não veio acompanhado de qualquer iniciativa de escala para superar a crise social e econômica que assola o continente.
Não cabe, aqui, entrar nos detalhes do tratado assinado. Em linhas gerais, pretende ser mais restritivo em relação à migração ilegal e criar mais opções para a migração legal. Porém, nem de longe ataca as questões estruturais que fomentam os processos migratórios. Fica a impressão de que, a despeito dessas novas flexibilizações, trata-se de um exercício de jogar para a plateia, e enxugar gelo em tempos de aquecimento global.
A migração é um componente histórico da trajetória dos povos, forçada ou voluntária. Deriva de várias causas, políticas ou econômicas, com elementos de tragédia, ou de violência. Em geral, esses movimentos de populações suscitam conflitos entre o direito de todas as pessoas ao acolhimento em situações de penúria e de sofrimento e as políticas nacionais que protegem países e territórios dos impactos da ocupação massiva por terceiros.
Fluxos migratórios têm assumido enormes proporções em quase todas as partes do mundo. Têm, como pano de fundo, o crescimento da população mundial, da miséria e das condições de mobilidade, trazendo, como manchetes principais guerras, epidemias e catástrofes climáticas. As migrações continuarão crescendo, assim como a demanda dos países por acordos e regras.
Vício de origem
No discurso de abertura da cúpula, Biden defendeu a democracia e o meio ambiente. No entanto, foi criticado pelo presidente da Argentina, Alberto Fernández, pela exclusão, já na sua na convocação, de Cuba, Nicarágua e Venezuela. Biden alega a ausência de democracia para essa exclusão, mas a situação desses países não é idêntica e a crise da democracia, no continente, não se reduz a eles.
A questão migratória envolve todos os países, em intensidade e sentido diferentes. Pactos continentais a seu respeito não dependem, necessariamente, de unanimidade, mas deveriam incorporar todas as nações que se dispusessem a discuti-la, o que ampliaria a sua eficácia. A exclusão, a priori, não favorece o objetivo da reunião.
Biden fez bem ao destacar as agendas democrática e ambiental no seu discurso, mas se elas fossem levadas a fundo como critério de exclusão provavelmente inviabilizariam a própria realização do encontro. Todos têm dívidas com uma ou com ambas as agendas. Até a inclusão do Brasil seria questionável.
Biden “maravilha”
Só que o Brasil é o segundo país mais populoso das Américas, origem e destino de significativos fluxos migratórios e a sua eventual exclusão fragilizaria ainda mais o acordo e a própria reunião.
O presidente Jair Bolsonaro não queria aceitar o convite de Biden. Ele fica constrangido nesses eventos, ao perceber o seu isolamento e a pouca disposição da maioria dos chefes de Estado em aparecer numa foto ao lado dele. Ademais, a antipatia pessoal entre Bolsonaro e Biden é diretamente proporcional ao apego pegajoso e constrangedor do primeiro ‒ e família ‒ ao ex-presidente Donald Trump.
Biden percebeu que a possível ausência do Brasil enfraqueceria ainda mais a cúpula e enviou a Brasília o diplomata Christopher Dodd com a missão de convencer Bolsonaro a participar. O mandatário brasileiro se fez de magoado, alegando ter sido ignorado por Biden em eventos anteriores. Exigiu e conseguiu agendar a sua primeira reunião bilateral com o presidente dos EUA.
Se houvesse muita substância no discurso de Biden, seria de esperar um encontro bilateral tenso com Bolsonaro. Mas não foi o que aconteceu. O norte-americano foi bem além da postura cordial de hospedeiro, chegando a agradecê-lo pela proteção da Amazônia, num exagero de bundonismo associado à mentira. Bolsonaro entrou apreensivo e saiu entusiasmado do encontro bilateral como Biden.
“Foi excepcional, muito melhor do que eu esperava. Naquela reunião aberta a vocês, colocamos os pontos básicos e depois fomos para a reservada, confidencial, segredo de Estado. Vão ficar curiosos… Segredo de Estado. Há um interesse dos Estados Unidos muito grande no Brasil, e a recíproca é verdadeira. E se a gente conseguir realmente consolidar, ampliar esse eixo Norte-Sul, será bom para todo mundo (…). Posso dizer que estou maravilhado com ele”, afirmou Bolsonaro.
A permissividade envergonhada do norte-americano diante da cara-dura do brasileiro, que chegou a pedir apoio na disputa eleitoral contra Lula, acabou ainda mais agravada com o desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo, no Vale do Javari, no oeste do Amazonas, às vésperas da cúpula internacional. O caso repercute em todo o mundo e escancara o aumento da violência na Amazônia, que, sob Bolsonaro, está entregue ao crime organizado.
Sinal de decadência
A política externa de Biden tem sido um tanto atrapalhada, desde o início do seu mandato. Exacerbou na retórica contra a China, induzindo-a ao pacto estratégico com a Rússia, que se animou a invadir a Ucrânia. A retirada de tropas do Afeganistão foi um fiasco. Deteriora-se o ambiente político global, dificultando a superação dos efeitos da pandemia e o avanço de pautas civilizatórias sobre mudanças climáticas, direitos humanos e desarmamento.
Fato é que, até agora, Biden não apresentou qualquer programa consistente de cooperação pan-americana. Nem mesmo foram retomadas iniciativas positivas dos tempos de Obama, de que Biden foi vice, como a da distensão nas relações com Cuba. A decisão do presidente dos EUA de convocar a Cúpula das Américas nesse vazio e de pautar a questão migratória, dissociada do desenvolvimento regional, parece mais orientada por pressões políticas internas do que por uma visão de futuro sobre o continente.
Porém, paliativos não resolverão a crise migratória e não reforçarão a retaguarda estratégica das Américas no contexto da nova correlação global de forças. Migração, democracia e meio ambiente deveriam ser partes de um debate mais amplo sobre a integração e a redução das desigualdades continentais, que pudesse incluir propostas como a de um programa pan-americano de renda mínima, que privilegiasse a permanência e o retorno das pessoas aos seus países de origem, ou como a implantação de sistemas sustentáveis de comunicações e de transportes que aproximassem todos os povos americanos, gerando empregos e renda nos vários países.
De quebra, um olhar mais generoso sobre as Américas, considerando uma agenda ampla, ajudaria muito a superar entraves históricos entre os países, como os que levaram às exclusões na cúpula, e a melhorar a qualidade democrática das suas instituições e das suas relações externas. Além de evitar situações humilhantes como esta a que Biden submeteu-se, diante de um militante anti-democrático e anti-ambiental, logo após responsabilizar seu desgoverno pelo desaparecimento de mais duas vítimas.