Devastação amazônica
A devastação da Amazônia é um projeto político de governo, respaldado por bancadas corporativistas e segmentos empresariais criminosos
Parte da aldeia de Aracaçá, na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, foi incinerada pelos próprios moradores. Após seguidos conflitos com invasores garimpeiros, os sobreviventes refugiaram-se em outras comunidades próximas. A Polícia Federal (PF) não encontrou indícios da ocorrência do estupro e morte de uma menina de 12 anos, conforme denúncia que ganhou repercussão nas redes sociais e imprensa, mas segundo a Hutukara Associação Yanomami (HAY) vários casos como esses, em diferentes regiões do território, tornaram-se comuns por causa dos invasores.
Incidentes com vítimas proliferam. Um levantamento realizado pela HAY mostra que metade das 360 aldeias Yanomami sofrem impactos diretos: assassinatos, troca de comida por sexo, contaminação por malária, covid, mercúrio e doenças venéreas, desestruturação cultural e produtiva.
Outro estudo, do projeto MapBiomas, revela a expansão da extensão devastada pela mineração predatória em todo país, que já é maior do que a ocupada pela mineração formal, embora responda por menos de 10% da produção mineral nacional. Cerca de 98% da área total sob mineração predatória está situada na Amazônia Legal Brasileira.
Ouro na mala
Também na semana passada, a PF apreendeu um carregamento ilegal de 78 quilos de ouro nas proximidades de Sorocaba (SP). O ouro, assim como o avião, não tinha autorização para circular. Ambos pertencem a Dirceu Frederico Sobrinho, dono da FD Gold, empresa com sede na Avenida Paulista, em São Paulo.
“Estou aqui para fazer um esclarecimento, para declarar que esse ouro pertence à minha empresa, FD Gold. Todo ele foi comprado sob permissão de lavra garimpeira concedida, que não pertence à área indígena, que não pertence a garimpos ilegais”, disse o empresário, sem esclarecer que garimpos legais eram esses e porque o transporte do ouro estava sendo feito de forma ilegal, embora escoltado por policiais militares.
A PF informou que o avião também foi apreendido porque é objeto de sequestro criminal em outro inquérito policial. Em 2018, a PF e o Ministério Público Federal (MPF) realizaram a Operação Levigação, para tentar combater a lavagem de ouro clandestina no Pará. A ação resultou no bloqueio judicial de R$ 187 milhões em bens dos investigados. Um deles era Dirceu. Na época, a PF cumpriu mandados de busca e apreensão nos escritórios da DJ Gold em Itaituba e em São Paulo. Itaituba é um município do sudoeste do Pará, cuja economia é gira entorno da garimpagem ilegal e predatória nas terras do povo indígena Munduruku.
Dirceu não é de sujar as mãos em lama de garimpo e não bebe suco de mercúrio, mas é um dos que ficam com a parte da fortuna oriunda desse tipo de atividade. Em 2018, disputou a suplência do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e é frequentemente recebido por ministros de Estado e pelo vice-presidente, Hamilton Mourão. É um predador influente, descolado e beneficiado pelo avanço da predação mineral.
Mais desmatamento
Foi também na semana passada que a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) apresentou um documento, assinado pela maioria dos senadores, pedindo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ponha em votação o chamado “Pacote da Destruição”, um conjunto de projetos de lei já aprovado pela Câmara dos Deputados que incentiva o roubo de terras públicas (grilagem), libera o uso de agrotóxicos indiscriminadamente e reduz o licenciamento ambiental a uma mera declaração dos executores de obras públicas e projetos econômicos.
Mesmo antes da sua aprovação final, a perspectiva de legalização de mais crimes ambientais já promove a explosão do desmatamento na Amazônia. O sistema Deter, operado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), registrou mais de mil quilômetros quadrados de florestas derrubadas em abril, um recorde histórico para esse mês, considerado o último do período chuvoso. É esse o combustível que animará incêndios florestais ao final da estiagem. Após sucessivos saltos nos três últimos anos, a taxa de desmatamento na Amazônia deve saltar de novo em 2022, graças à cumplicidade do governo Bolsonaro e ao vale-tudo em ano eleitoral.
Como se já não bastasse, a pródiga semana deu lugar, ainda, à aprovação pelo Senado de um projeto de lei complementar que estabelece como sendo de “relevante interesse público da União” a implantação de linhas de transmissão de energia em terras indígenas. Não surpreenderia uma eventual piora no seu texto durante a sua tramitação na Câmara. Povos e organizações indígenas não foram ouvidos antes dessa aprovação.
Agora ou nunca
Como se vê, a devastação da Amazônia é um projeto político de governo, respaldado por bancadas corporativistas e segmentos empresariais criminosos. A taxa de desmatamento, assim como as emissões de gases do efeito estufa decorrentes, decorre de processos variados, como a mineração predatória, a grilagem de terras, a extração de madeira, a má execução de obras. Sendo oficialmente promovidas, em vez de reprimidas, essas atividades predatórias levam vantagem na concorrência com a produção similar que se pretenda sustentável.
A estratégia política que orienta esse processo é de que, ao privilegiar segmentos específicos, mesmo criminosos, o governo obtém um retorno político imediato e consistente, embora setorial, enquanto que os danos causados ao patrimônio público e ao conjunto da sociedade têm caráter mais difuso e cumulativo, e raramente geram reações contundentes imediatas. É um processo que acumula passivos hediondos e acaba isolando o Brasil do mundo civilizado, mas os grupos de interesse predatório seguem disputando eleições e se reproduzindo, mesmo que à revelia dos interesses da maioria.
Agora, com a aproximação das eleições e a possibilidade de mudanças políticas significativas, o nervosismo espalha-se por toda essa teia predatória. É por isso que a Amazônia, seus povos e recursos naturais estão sendo atacados por todas as frentes pelos que tentam consumar outro patamar de devastação. Um novo governo terá que dispor de apoios e estratégias para desarmar essa bomba e para repor, o quanto antes, o Brasil na agenda contemporânea.