Ainda não se sabe ao certo o que motivou o presidente Jair Bolsonaro a desmobilizar, em 8 de setembro, a escalada golpista que culminou com as manifestações anti-democráticas da véspera, com foco em ataques ao Supremo Tribunal Federal (STF). De repente, Bolsonaro chamou o ex-presidente Michel Temer a Brasília para mediar uma conversa com o ministro Alexandre de Morais e divulgar uma “Carta à Nação“, desculpando-se por excessos e jurando respeito ao STF.

Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

O boato que rolou na época foi de que seria iminente a prisão do seu filho 03, Carlos Bolsonaro, que liderava a enxurrada de fake news da propaganda presidencial. A versão estranha supunha, implicitamente, que Moraes o pouparia da prisão em troca de um comportamento mais respeitoso do presidente em relação aos demais poderes. O que teria sido uma barganha indecorosa.

Porém, na semana passada, o senador Flávio Bolsonaro acrescentou um elemento importante na história, dizendo que auxiliares pressionavam pelo golpe: “Todo mundo estava acreditando que o presidente iria causar uma ruptura institucional. Aliás, muita gente queria e ele, na sua sabedoria, não o fez, pelo bem do Brasil”. Atribui-se a expressão “muita gente” aos militares que ainda cercam Bolsonaro. Se assim foi, é provável que os ministros do STF e o Temer soubessem que o próprio presidente teria a sua prisão decretada caso alguma ação golpista se efetivasse.

Trégua efêmera

O conluio ou recuo de Bolsonaro em relação ao STF durou três meses. Em 3/12, Moraes acolheu um pedido da CPI da covid e instaurou mais um inquérito para apurar a responsabilidade do presidente por ter afirmado, numa live, que as pessoas imunizadas contra a doença se tornavam mais vulneráveis à AIDS. Bolsonaro então chutou o balde, dizendo que Moraes estava “jogando fora das quatro linhas do campo” e ameaçou reagir dessa forma.

Um novo confronto ocorreu na semana passada, quando o ministro Luís Roberto Barroso determinou a exigência do “passaporte de vacinação” para quem entra e sai do país, contrariando a opinião do presidente, que o acusou de invadir competências do Poder Executivo.

Foto: Reprodução

Na mesma semana, Bolsonaro partiu para cima do ministro Edson Fachin, sem que tivesse havido qualquer andamento no julgamento do marco temporal – a ação que pretende excluir do direito à demarcação das suas terras as comunidades indígenas que não as estivessem ocupando na data da promulgação da Constituição. O presidente tachou o ministro de “trotskista”, por ter rejeitado a ação e preservado os direitos indígenas, e disse que terá que “tomar providências” caso a maioria do STF acompanhe o seu voto na continuidade do julgamento.

Apesar de ter emplacado o segundo nome indicado para ministro do STF, o “terrivelmente evangélico” André Mendonça, funcionários do alto escalão do Planalto informaram à Veja que Bolsonaro prepara novos ataques ao tribunal para os próximos dias. Segundo eles, seria uma estratégia voltada para a campanha eleitoral e não para um golpe de estado. Ou seja: o reinício da escalada de confrontos responderia mais à sua queda nas pesquisas de intenção votos do que, propriamente, a uma campanha golpista. Mas há controvérsias.

Lexotan

O descompromisso de Bolsonaro com o regime democrático e com a Constituição de 88 é público e notório. O surto de sabedoria em 8 de setembro, alegado pelo senador Flávio, se levado a sério, deveria reconhecer a ignorância que marcou a atuação presidencial por meses a fio, até aquela data. Não há qualquer garantia de que a retomada dos ataques ao STF, em especial aos ministros que estarão à frente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), se limitará à propaganda política.

Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Foi nesse clima que o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, fez vazar o seu discurso em recente formatura de agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin): “Temos um dos Poderes que resolveu assumir uma hegemonia que não lhe pertence, não é… não pode fazer isso, está tentando esticar a corda até arrebentar. Nós estamos assistindo a isso diariamente, principalmente da parte de dois ou três ministros do STF. E que eu, particularmente, que sou o responsável, entre aspas, por manter o presidente informado… eu tenho que tomar dois Lexotan na veia por dia para não levar o presidente a tomar uma atitude mais drástica em relação às atitudes que são tomadas por esse STF que está aí.”

Heleno deve ser um dos auxiliares que Flávio agora acusa de induzir Bolsonaro ao golpe. Sua crescente dependência do Lexotan também pode estar associada às recentes pesquisas eleitorais, que indicam uma provável vitória do Lula no primeiro turno das eleições presidenciais e informam que a rejeição ao presidente já alcança 60% dos eleitores, o dobro da relativa aos demais concorrentes. Embora ele mantenha em torno de 30% das preferências, concorrentes à direita, como Sérgio Moro, podem desidratá-las. Ainda faltam 10 meses para as eleições, mas essa situação de fragilidade é inédita para um presidente candidato à reeleição.

A retomada do confronto com o STF não reverte a baixa preferência pela candidatura do presidente e mais parece orientada para deslegitimar a autoridade eleitoral. Assim, chegamos ao final de 2021 com essa dúvida atroz: se permanecer evidente uma fragorosa derrota em 2022, a que aventuras pretendem nos levar Bolsonaro, Heleno et caterva, para além das quatro linhas do gramado? Não houve, não há e cada vez menos condições haverá, internas e externas, para o golpismo prosperar, mas pode ser que a loucura deles, aflita, escolha um final que lhes pareça menos indigno do que a rejeição popular definitiva.

Só espero que eles não prejudiquem o meu desejo de um natal fraterno e de um 2022 melhor para todos os leitores. A coluna retorna no dia 6 de janeiro.