Dela, dele, delu – a resistência dos retrógrados à linguagem neutra
Regras hegemônicas sempre são escritas por corpos, grupos, articulações políticas hegemônicas e, não raro, retrógradas.
Por Jaqueline Fernandes
No princípio era o verbo, divindade: comunicação, palavra, linguagem. Mas aí vieram as regras hegemônicas para o uso formal da língua… e a gramática. Regras hegemônicas sempre são escritas por corpos, grupos, articulações políticas hegemônicas e, não raro, retrógradas. Faço questão de enfatizar a palavra retrógrado porque há um tempo sinto muito incômodo com a não diferenciação entre os significados de conservador e retrógrado. Nas culturas populares, conservadores são importantes porque preservam sua cultura e tradições por todas as vias necessárias e, ao mesmo tempo, sabem muito bem que cultura e tradição são dinâmicos, assim como a linguagem. Mas o retrógrado não, ele anda pra trás. Na rua a gente chama de atrasa lado.
Atrasar os lados de gente preta, indígena, periférica, LGBTQIAP+ tem sido esporte preferido daqueles que hoje estão à frente do Poder Executivo em âmbito nacional. No dia 27 de outubro o Ministério da Cultura, pasta onde hoje se encontra a Secretaria Nacional de Cultura, publicou no Diário Oficial da União uma portaria proibindo o uso de linguagem neutra em projetos financiados pela Lei Rouanet.
Seria cômico se não fosse tão trágico. Por que raios eles fariam uma investida para proibir o uso da linguagem neutra em projetos financiados por uma lei que, na gestão atual, já não financia nada divergente há tempos? Já estava bem óbvio que só não iriam matar esse mecanismo de incentivo à cultura porque para eles é mais fácil consolidar uma estrutura de concentração de recursos em projetos específicos, onde a diversidade cultural, geográfica, étnica, de orientações e identidades de gênero não cabe.
Além do fato de que a Lei Rouanet tem sido criminalizada e desmontada, a questão aqui é a importância da linguagem. Quando nós falamos sobre o tema, nos acusam de “mi mi mi”. Mas, fosse “mi mi mi” sem importância, a extrema direita brasileira não estaria se concentrando tanto em atacar nossas subjetividades, simbólicos e a crescente popularização do uso de linguagem neutra. Segundo o Secretário Nacional de Cultura, o objetivo da portaria é “garantir a ampla fruição dos bens culturais, não permitindo que uma imposição de cima para baixo inviabilize ou dificulte o acesso à cultura”.
“A linguagem neutra (que não é linguagem) está destruindo os materiais linguísticos necessários para a manutenção e difusão da cultura (…) o uso de signos ininteligíveis, cujo objeto é mera bandeira ideológica, impede a fruição da cultura e seus produtos, pois interrompe o processo de comunicação da língua” – disse o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula. Fico me perguntando se eles se ouvem falando isso.
Importante atentar para o fato de que já existem mais de 15 propostas de leis estaduais em tramitação, com esse mesmo teor, em espaços/instâncias diferentes. Em Santa Catarina já temos um decreto publicado, mirando as escolas públicas. O Projeto de Lei 5248/20 proíbe o uso da “linguagem neutra” na grade curricular e no material didático de instituições de ensino públicas ou privadas no ensino da língua portuguesa no ensino básico e superior. A proposta se estende para documentos oficiais, editais de concursos públicos, projetos culturais, esportivos, sociais e, claro, à publicidade.
Passada a fase de que a disputa narrativa pela linguagem neutra, inclusiva, não sexista e/ou não-binária era apenas era algo irrelevante, nesta fase do game eles, os retrógrados e narcisistas, disputam desesperadamente por meio de fake news, projetos, canetadas e, claro, da legislação.
A língua portuguesa e a linguística formal têm sido utilizadas para reforçar desigualdades e a existência de grupos em situação de exclusão e vulnerabilidade. E por isso nós vamos seguir disputando e afirmando a linguagem neutra, dinâmica, inclusiva, a despeito dessa gente guiada pelo ódio, desespero e aversão à diversidade. Eles estão desesperados. E é bom ficarem mesmo.
O futuro é plural e eles não poderão mais controlar a mudança. Gênero masculino e seus plurais não representam o todo. Somos todas, todos e todes. Não bináries serão chamades como quiserem, pessoas se audeclararão e serão chamadas pelos nomes e pronomes que se identificarem. E, assim como a linguagem da exclusão e da cis heteronormatividade formal de hoje espelha o que os grupos politicamente hegemônicos pensam, o futuro vai ser da maioria real. Para o desespero deles.