O bolsonarista laboratório paranaense de escolas cívico-militares
Contra implementação de modelo bolsonarista nas escolas do Paraná, organizações lançam nesta segunda (24) o Observatório das Escolas Militarizadas.
Por Lígia Ziggiotti e Rafael Kirchhoff*
Em abril de 2021, durante mais um auge de superlotação de hospitais brasileiros em pandemia, por determinação do Tribunal de Contas da União, constatou-se que as Forças Armadas contavam com até 85% de leitos ociosos em enfermarias e em unidades de terapia intensiva exclusivas para militares. Mesmo para um país que não se encontra em guerra, não faltam fartos investimentos dedicados ao Exército. Formar crianças-soldado ou tornar crianças-alvo parece compor parte deste fomento. Através dele é que se implementa o maior programa de militarização da educação do país, que alcançou, recentemente, patamar legislado por iniciativa do governador do Paraná, Ratinho Júnior.
O processo disparou em outubro de 2020. À queima-roupa, em plena pandemia, e sequer com expectativa de retorno de aulas presenciais, a casa parlamentar votou em regime de urgência um ambicioso programa de militarização de escolas públicas, provocada pelo chefe do Executivo deste estado. Daí resultou a Lei 20.338, cujo objetivo consistia em uma transformação grandiosa de 10% do ensino público local para um modelo cívico-militar, no qual se absorvem, injustificadamente, militares para a gestão de escolas.
A votação a toque de caixa impossibilitou o envolvimento da sociedade civil e de protagonistas da educação em discussões sérias sobre a real necessidade da presença policialesca em ambiente escolar. Maciçamente apoiada por parlamentares, à aprovação da medida seguiu-se um atabalhoado processo de consulta à comunidade escolar regulamentado por resolução do Poder Executivo e efetivado poucos dias após sua publicação. Muitas direções só souberam pela imprensa que a própria escola fora indicada para se militarizar e que passaria, consequentemente, pela consulta.
Mesmo com aulas presenciais suspensas, a comunidade escolar foi convocada a se apresentar para expressar, em controverso formato de voto aberto, apoio ou não à implementação do modelo. Atingido o apressado quórum de apenas 50% de participantes, dentre os possíveis, dava-se por encerrada a oitiva, contra a qual não faltaram denúncias de boca de urna e de desproporcionalidade em peso de votos. Um pai de três estudantes, por exemplo, valia por três votos, o que acelerou o alcance do resultado esperado pelo governador e mascarou a real aprovação da medida.
Mas, por enquanto, o apetite de Ratinho Júnior pela presença militar em salas de aula não se converteu em recrutamento suficiente. É certo que a consulta realizada logrou alistar, até o momento em que escrevemos, duzentas e seis escolas como potenciais candidatas a este formato falido, pedagogicamente, em todo o estado. Mesmo assim, sobram vagas de diretores e de monitores.
A ausência de apresentação de militares suficientes para o preenchimento destes cargos conduziu a outra manobra legislativa que trouxe novas nuances para a implantação do programa. Em janeiro de 2021, mais um projeto de lei foi submetido à Assembleia Legislativa do Paraná, desta vez, em convocação extraordinária durante o recesso legislativo, para flexibilizar os critérios de potencial militarização. Com isso, consubstanciou-se a Lei 20.505 de 2021, segundo a qual as escolas não mais necessitam atender a todos os requisitos previstos anteriormente, permitindo maior adesão ao programa. A limitação de habitantes por município para receber a iniciativa, ilustrativamente, caiu por terra. Por outro lado, a escola transformada em colégio cívico-militar deixa de ofertar, no próximo ano letivo, o ensino integral, o técnico, o noturno e o CEEBJA, dedicado a jovens e a adultos. As escolas rurais, indígenas, quilombolas ou conveniadas ficaram excluídas de optar pelo modelo.
Ao superar a abrangência do próprio Programa Cívico-Militar proposto pelo Governo Federal, o modelo paranaense já não visa, como originalmente, instalar-se em regiões de alta vulnerabilidade social, como em periferias e em escolas com baixo IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica). Os ajustes legais tornam a proposta mais atraente ao corpo militar, oferecendo não apenas uma complementação de renda, mas também a ocupação de escolas da classe média, próximas às suas residências, com corpo estudantil simpático àquela disciplina, com dedicação exclusiva aos estudos e com acesso amplo a uniformes.
Seria realmente difícil aumentar o IDEB e servir de exemplo, como pretendem os idealizadores da iniciativa, sem estas condições pré-estabelecidas, porque, bem ao contrário do que tentaram emplacar, discursivamente, os seus entusiastas junto à comunidade educacional, as escolas cívico-militares não se confundem com os colégios militares. O desempenho destes, de fato, é diferenciado, embora seja ainda inferior ao de Institutos Federais, que têm sofrido por corte de verbas – o que demonstra o interesse ideológico e discricionário por trás destes investimentos. Contudo, a realidade das escolas cívico-militares se afasta destes dois modelos, e se caracteriza, especialmente, pela gestão educacional e administrativa por militares da reserva.
O viés classista do ingresso deles em salas de aula se reflete em extinção do ensino integral, técnico, noturno e de educação para jovens e adultos. Estes serviços beneficiam, historicamente, as populações menos favorecidas. Estão aí as mães que trabalham porque os filhos estudam em período integral; os jovens trabalhadores que tentam se qualificar e almejam espaços profissionais que os remunerem dignamente; adolescentes que, a despeito de terem que trabalhar para auxiliar financeiramente a família, seguem estudando em período noturno; e, finalmente, adultos que podem retornar aos estudos e aspirar novos horizontes através de um modelo específico de ensino-aprendizagem.
Há, ainda, uma gama de outras questões em aberto. Faltam dados claros sobre a origem e o destino dos recursos financeiros que o modelo demanda dos cofres públicos; sobre as opções dadas a estudantes que não querem se matricular em instituições que se tornaram militarizadas; sobre em que consiste a disciplina militar estranhamente almejada em um ambiente educacional e sobre os mecanismos de limitação da atuação de caráter policial para fiscalizar e responsabilizar violações de direitos da comunidade escolar.
Até agora, sabe-se que em um dia normal de aula em Colégios Cívico-Militares do Paraná, de acordo com o curso de formação de monitores elaborado pelo governo do estado, é com o chamado de “Turma, sentido!” que um representante deve apresentar a sua classe a docentes. A saudação é inspirada em um pelotão que recebe um comandante. A padronização da estética e dos costumes desponta como ordem. Não se pode usar black power. Não se pode demonstrar afeto – menos ainda entre sujeitos do mesmo gênero. As roupas e os penteados são bem marcados como femininos ou masculinos. Não se pode usar gírias. Diariamente, projeta-se uma formatura aos moldes das forças armadas.
Tudo reflete um investimento intenso para o controle de corpos infanto-juvenis. É sabido que certos espaços parecem estratégicos para discipliná-los. Impera uma obsessão para se imprimirem nestas gerações determinados comportamentos que fortalecem paradigmas. O de trabalhadores e de trabalhadoras dóceis e acríticos, desde o ponto de vista do capitalismo. O machista e de heterossexualidade compulsória, desde o ponto de vista de gênero. O racista, desde o ponto de vista racial. A partir de uma lógica militarizada, as perspectivas que emergem destas vivências de crianças e de adolescentes não importam, porque ali se veem meros vetores para a perpetuação destas normas.
Por esta análise, a rigidez com que se saúda, cotidianamente, o corpo discente potencialmente forma crianças-soldado, para se aproveitar do conceito da Organização das Nações Unidas sobre a infância treinada para conflitos. Ao mesmo tempo, o estado do Paraná desenha crianças-alvo, porque a expectativa tem sido a de perseguição daquelas que não confirmam o padrão hegemônico sonhado como único pelo trágico projeto bolsonarista de país.
Lígia Ziggiotti é doutora em Direitos Humanos e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH (@anajudh_lgbti).
Rafael Kirchhoff é advogado, militante de direitos humanos e presidente da ANAJUDH (@anajudh_lgbti).