A derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais dos EUA indica que, pelo menos nesse caso, a mentira teve pernas curtas. Foi um alívio planetário. A vitória de Joe Biden e Kamala Harris tem significados muito importantes para o grave momento vivido pela humanidade e traz lições contundentes para protótipos de ditadores e criminosos ambientais mundo afora. Ganharam a democracia, o respeito pelos diferentes, o resgate da pobreza e, principalmente, a esperança de que os principais atores globais – EUA, União Européia e China – unam-se para enfrentar, de forma mais consistente, as causas e os efeitos das mudanças climáticas.

Com a apuração dos votos já em curso, Trump formalizou a retirada dos EUA do Acordo de Paris, tratado internacional sobre as mudanças climáticas, o que vinha anunciando – e praticando – desde sua eleição, em 2016. Biden reagiu de imediato, afirmando que os EUA retornarão ao acordo e que pretendem liderar os esforços internacionais pela redução das emissões de gases do efeito estufa. As emissões globais já superaram a marca apontada pelos cientistas como limite para se evitar os impactos mais drásticos do aquecimento do planeta e as políticas de Trump vinham solapando avanços anteriores do governo Obama. A contração econômica causada pela pandemia do coronavírus atenuou o retrocesso, mas agora se espera uma retomada mais sustentável da economia americana e, em consequência, das emissões.

Biden está longe de ser um esquerdista, como Trump pretendeu caracterizá-lo. Com 50 anos de atuação política, oito dos quais como vice de Barack Obama, Biden é conhecido como homem de posições moderadas. Ele tem dito que vai governar para todos os norte-americanos e, portanto, não pretende confrontar, ou ignorar, mais de 70 milhões que votaram em seu adversário. Espera-se, porém, que tenham alguma força em seu governo setores progressistas que garantiram a mobilização inédita que o levou a ser o presidente mais votado da história, na eleição com maior número de votantes. Outra expectativa é que Kamala Harris, primeira mulher a ocupar a Vice-presidência, seja promotora de agendas progressistas no próximo governo.

Além da questão climática, outras pautas civilizatórias estarão em alta. A defesa dos direitos humanos, em geral, e o respeito às diferenças raciais, étnicas e sexuais, em particular, que emergiram a partir das manifestações contra o racismo e a violência policial, estarão no topo da agenda, inclusive da política exterior. Esses serão parâmetros definidores da natureza das relações bilaterais com o Brasil.

Posições grotescas

A posição do governo Bolsonaro nas relações internacionais têm sido grotescas. O presidente e o chanceler Ernesto Araújo estabeleceram afinidades pessoais e ideológicas como referência nas relações com os países e, no caso de Donald Trump, chegando a situações caricatas, posturas pusilânimes e subservientes. Bolsonaro enfiou o rabo entre as pernas diante dos tarifaços protecionistas de seu suposto aliado na Casa Branca, que afetaram, entre outros, as exportações de aço para os EUA. O dirigente brasileiro foi ao extremo de isentar nossas importações de etanol, prejudicando os produtores nacionais, especialmente para favorecer o candidato republicano nas eleições, especialmente no estado de Iowa, maior produtor do combustível dos EUA, e onde Trump efetivamente venceu.

Quem ficou mal nessa fita foi o embaixador dos EUA no Brasil, Todd Chapman, que está sob investigação da Câmara dos Deputados sob a acusação de promover ingerência externa no processo eleitoral dos EUA, por causa desse episódio do etanol. E vamos ver agora com que autoridade moral o governo brasileiro poderá questionar eventuais medidas protecionistas do governo Biden. O alinhamento automático de Bolsonaro a Trump só resultou em prejuízos comerciais para o Brasil, até o momento, e nos deixou mais frágeis daqui para a frente.

Desmatamento

Mas o ponto central das relações bilaterais não será a questão tarifária e, sim, o desmatamento na Amazônia. Biden já cantou essa bola nos debates eleitorais dizendo, em resumo, que oferecerá apoio financeiro para o governo brasileiro combater a destruição da floresta, mas esperará sua redução, sem o que o país sofrerá sanções. E Bolsonaro respondeu, valendo-se do princípio da soberania nacional – que ele esqueceu durante o governo Trump – para defender o suposto direito do país (de desmatar mais).

Querendo botar panos quentes na tensão, o vice-presidente, Hamilton Mourão, que preside o Conselho Nacional da Amazônia e é responsável pelo combate ao desmatamento na região, disse que não haverá conflito com Biden porque os EUA precisam resolver primeiro seus próprios passivos ambientais, lembrando que os EUA emitem muito mais gases estufa do que o Brasil. Ele também orbita na lógica do direito de desmatar, enquanto o que se discute é o que cada país fará para reduzir as suas emissões e evitar o pior para todos. Bom lembrar que a derrubada da floresta responde pela imensa maioria das emissões brasileiras de gases de efeito estufa.

Quando ficou clara a vitória de Biden, Bolsonaro disse: “eu não sou a pessoa mais importante do Brasil, assim como Trump não é a pessoa mais importante do mundo, como ele bem mesmo disse. A pessoa mais importante é Deus. A humildade tem que se fazer presente entre nós”. Sem entrar no mérito da sua divindade, um pouco de humildade até que faria bem ao presidente. A política predatória, passadista, a que ele e os seus apoiadores próximos apegam-se, fundamentada na promoção da grilagem de terras e na extração predatória de minérios e madeiras, está inviabilizada, pois implica, necessariamente, o aumento do desmatamento, das queimadas e das emissões florestais.

Há quem aposte que, daqui para frente, Bolsonaro será mais “pragmático”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tentando minimizar o impacto da eleição de Biden, disse que “o Brasil vai dançar com todo mundo”. Eu diria que já vem dançando há algum tempo, com a China, a Europa e a Argentina, podendo dançar agora, mais ainda, com os EUA também.

Só que Bolsonaro não é pragmático e está à deriva com a sua própria loucura, pouco se lixando para os interesses diplomáticos do Brasil ou o respeito à soberania de qualquer povo ou país. Diante da perspectiva de que a administração Biden o pressione por conta da devastação da Amazônia, fez mais uma de suas bravatas, insinuando um possível conflito com a maior potência do planeta: “Porque quando acabar a saliva, tem que ter pólvora, se não, não funciona”. O que não falta a Bolsonaro é saliva. O que não falta aos EUA é pólvora.

Para não terminar esse texto na bacia das almas do bolsonarismo, vale lembrar que Kamala Harris, no discurso de vitória, citou palavras do falecido deputado federal dos EUA, John Lewis: “A democracia não é um estado, é uma ação”. Do que ela deduziu que “a democracia é tão forte quanto a disposição de lutar por ela”. Fica aqui um recadinho também para as forças de oposição no Brasil.