A hora do continuísmo
Há determinadas conjunções astrais que exacerbam, ao mesmo tempo, a carência de poder contínuo de vários atores institucionais.
O título deste texto mais parece uma contradição em si, pois é da essência do continuísmo abarcar todas as horas. Mas há determinadas conjunções astrais que exacerbam, ao mesmo tempo, a carência de poder contínuo de vários atores institucionais.
Bolsonaro está em plena campanha pela reeleição, há 25 meses da próxima eleição presidencial. É que o auxílio emergencial, criado para atenuar o impacto social da epidemia do covid-19, reverteu a tendência de queda e até agregou alguns pontos à sua popularidade. Ele está apaixonado pelos programas sociais, que antes atribuía aos comunistas, mas agora quer rebatizar para poder se apropriar deles.
Claro que o Brasil já está pagando caro por essa absurda campanha antecipada, que ainda vai custar muito mais. Mas é próprio dos desgovernantes fazer campanha em vez de governar, para continuar desgovernando. Bolsonaro, enquanto percorre grotões colhendo dividendos, delega o dia a dia do desgoverno ao dileto grupo de amigos generais, associado aos políticos do “Centrão”, que tudo sabem sobre continuísmo. Esse processo estimula outro, de formação de uma casta fisiológica que estende seus tentáculos sobre várias instituições civis do Estado e reclama privilégios, como o de receber salários acima do teto.
Mas não é só o Bolsonaro. Davi Alcolumbre também quer continuar presidindo o Senado. Para tanto, quer que o Supremo Tribunal Federal (STF) torça a interpretação da Constituição e do próprio regimento do Congresso, para que ele possa se eleger para mais um mandato. Tarefa difícil, pois a Constituição é clara: “cada uma das Casas reunir-se-á em sessões preparatórias, a partir de 1º de fevereiro, no primeiro ano da legislatura, para a posse de seus membros e eleição das respectivas Mesas, para mandato de 2 (dois) anos, vedada a recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente”.
Outra hipótese prorrogacionista depende de emenda à Constituição, para o que seriam necessários os votos de 60% do Senado e da Cãmara, mais que os 50% do Senado necessários para a reeleição em si. Para chegar lá, Alcolumbre adotou o bundonismo como estratégia política, para ficar bem com o governo e com a oposição, ao mesmo tempo. A senadora Rose de Freitas (Podemos-ES) apresentou uma proposta de emenda à Constituição para permitir a reeleição de Davi Alcolumbre e de Rodrigo Maia, para a presidência da Câmara, mas que gerou uma crise em seu partido, que tem posição contrária e a afastou da bancada.
Diferente da sorte longínqua de Bolsonaro, que seria o nosso maior azar, a de Alcolumbre tem que se resolver agora para ele poder se recandidatar em janeiro. Se colar, vai servir também para Maia, que não se expõe, como Alcolumbre, na defesa do casuísmo continuísta, mas sabe que ele pode vir a ser um mal menor na lógica de diversas forças e, por isso mesmo, não adere ao governo, nem faz tramitar o impeachment do presidente da República.
O continuísmo de alguns viola as pretensões de outros. Quando Bolsonaro planta notas na imprensa para especular se as ministras Damares Alves ou Teresa Cristina seriam suas candidatas a vice, condena Mourão ao fogo do inferno amazônico. Se a continuidade de Alcolumbre fosse vital para o Congresso, não precisaria do STF para validá-la, mas há outros candidatos ao cargo. O mesmo se aplica à Câmara, onde o Bolsonaro pretende cooptar mais votos para, eventualmente, emplacar (lá) uma novidade que reforce (cá) sua própria continuidade.
Síndrome continuísta
Há quem naturalize a atual síndrome continuísta e a considere parte intrínseca da natureza mesma do poder -e terá uma longa tradição a seu lado, nascida do aparato monárquico e colonial que forjou o próprio Estado no Brasil. Mesmo no regime militar, quando havia um pacto corporativo de certa impessoalidade e mandatos definidos para cada ditador, sua duração tendia ao alongamento, com o que tivemos que suportar seis anos com o inepto general Figueiredo na Presidência.
A novela prosseguiu no período democrático mais recente. A Constituinte reduziu a duração do mandato presidencial para quatro anos, mas Sarney esperneou para manter os seis anos previstos na Constituição anterior, e acabou ficando com cinco. Collor caiu após dois anos e meio no poder e Itamar, presidente só por um ano e meio, talvez tenha deixado o melhor legado. Fernando Henrique fez o Congresso aprovar a reeleição, mas o seu segundo mandato foi pior que o primeiro. Lula era contra a reeleição, se apropriou dela para si e para a Dilma, e deu no que deu. Até o Temer pensou em se candidatar à reeleição, tendo apenas 7% de aprovação. Bolsonaro também se opunha à reeleição e, agora, o seu apego vai ao paroxismo de superar o próprio tesão em governar.
Os defensores do continuísmo alegam, também, que ele garante maior estabilidade política num país com instituições frágeis e que o mandato de quatro anos é muito curto para um presidente realizar o “seu” projeto. Acontece que as políticas deveriam ser de Estado, passíveis de reorientação segundo as decisões dos eleitores, das quais os presidentes deveriam ser fiadores.
O continuísmo não apenas não nos poupou, como nos condenou à situação decadente e deprimente em que o país se encontra, com a população doente, carente, desempregada, condenada à miséria e à manipulação populista. Essa situação de indigência e penúria, de corrupção reciclada, de depressão econômica e degradação de nossa autoimagem deve ter a ver com essa tal estabilidade. Se o continuísmo é da essência do poder, limitá-lo é objetivo legítimo e primordial dos que podem ser vítimas dele.