Não devemos nos calar, não devemos naturalizar
Uma menina de 10 anos foi estuprada pelo tio por 4 anos e está grávida. Dentre toda a angústia que deve estar vivendo, ainda pesa o risco de ter que seguir com uma gravidez quando por lei ela tem direito a um aborto seguro e gratuito.
Nos últimos dois dias, as redes sociais investiram parte do seu tempo para falar sobre um caso, que aconteceu no Espírito Santo, de uma criança de dez anos que sofria abuso sexual do tio desde os seus seis anos de idade, e que agora encontra-se grávida. Sim, ela foi ESTUPRADA. A notícia me chocou. Acredito que ninguém em plena consciência não tenha ficado chocada como eu. Foi um enjoo. Um misto de indignação e decepção.
Essa família não era acompanhada por nenhuma rede de assistência? Ninguém nunca percebeu que isso acontecia? Familiares? Amigos? O Estado não é omisso nesse caso?
Juridicamente, a mulher tem direito ao aborto em três situações: quando a gravidez tem risco de vida para a mulher, em caso de anencefalia e em caso de estupro. No caso em questão, por se tratar de uma criança, o aborto precisa ser autorizado pelos pais.
Por outro lado, sexo com criança menor de 14 anos é crime de estupro de vulnerável no Brasil, PEDOFILIA, e estupro são crimes no Brasil. Que o Brasil não é um lugar seguro para nós mulheres, a gente já sabia. Se não sabia, eu trago dados.
Ano passado, em fevereiro, o Datafolha, em pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), avaliou o impacto da violência contra as mulheres no Brasil. O levantamento mostra que 1,6 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento e que 22 milhões (37,1%) de brasileiras passaram por algum tipo de assédio. 42% dos casos de violência ocorreram dentro de casa. 76,4% das mulheres que sofreram violência, dizem que o agressor era alguém conhecido. No recorte de raça, as pretas e pardas são as mais vitimadas.
Não me vem outra saída à cabeça que não seja a de garantir que essa menina, violentada há tanto tempo, tenha o direito de viver a sua infância e que o Estado tente diminuir, através de um acompanhamento psicológico, médico e social, as futuras consequências emocionais, sociais e econômicas em sua vida.
Mas logo me lembrei de dois outros casos que ocorreram ainda este ano, que vão de encontro ao que considero ser a decisão correta: um caso em janeiro, na cidade de Tarauacá, no Acre, e outro, em abril, em Teresina, PI. Nesses dois casos, outras meninas de 10 anos também foram estupradas por parentes próximos. O caso de Teresina ganhou repercussão em janeiro, depois de a bebê ter nascido; no caso do Acre, o pai autorizou o aborto e logo voltou atrás da decisão. Aquela criança já deve estar perto de parir outra criança.
O governo federal, através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), chefiado por Damares Alves, enviou uma nota para o jornal “A Gazeta” respondendo sobre o casa de Espírito Santo, em que informa que “[…] ficou estabelecido que a criança e a família acompanhadas por equipes do CREAS, com atendimento psicológico por tempo indeterminado, a fim de amparar emocionalmente a criança vitimada, que ainda se encontra em desenvolvimento, bem como seu bebê.”
A nota do Ministério deixa nítido que o governo elimina a possibilidade de aborto ao colocar a centralidade no “bebê”, que ainda é um embrião. Para o ministério, pouco importa a infância daquela criança ou o que ocasionou a sua gravidez. (Para mim,) essa é uma nota em defesa de uma família que corrói os corpos e as vidas das mulheres, e que destina às meninas brasileiras o silêncio diante das violências que elas sofrem devido ao patriarcado e ao machismo. De que vida essas pessoas são a favor?
O governo brasileiro votou, ainda este ano, na Organização das Nações Unidas (ONU) contra o trecho de um projeto de resolução sobre diretrizes ao combate à violência contra mulheres e crianças, que garantia o acesso universal à educação sexual como uma das formas de lidar com a discriminação e a violência. O Brasil votou junto a países como Arábia Saudita, Qatar, Bahrein, Paquistão e Iraque.
Não podemos naturalizar a violência contra a mulher, muito menos somente pelo fato de sermos mulheres. Eu tremo ao saber que estamos diante de governo neofascista que quer nos impor o silêncio novamente, logo agora que parece que aprendemos a gritar mais alto e juntas.
Precisamos criar uma rede de solidariedade às mulheres vítimas de estupro. Sejam elas crianças, velhas, adultas. Uma rede paralela. Real. Que ofereça todos os tipos de apoio. Não podemos simplesmente deixar nossas vidas nas mãos de um Estado cada vez mais opressor, machista e assassino.
Isso não quer dizer que devamos esquecer a política institucional, nem deixar de cobrar do Estado sua responsabilidade. Tampouco acredito que devamos fazer dessa rede algo absoluto, antipartidário e contra as políticas públicas. Na minha leitura, essa rede deve ocorrer em paralelo e deve ser parceira dos governos interessados no combate à violência contra a mulher.
Não podemos deixar de disputar e de querer mais mulheres progressistas no poder. Lá se fazem as leis. É lá que, quando estamos fracas na sociedade, ELES, homens, brancos, ricos, héteros, nos impõe sua agenda conservadora. É lá que o discurso conservador e misógino ecoa.
Faço aqui um apelo ao Tribunal de Justiça do Espírito Santo, para que julgue o caso com laicidade. Que garanta a possibilidade de ela se tornar uma mulher livre, feliz e que possa revolucionar a vida de outras meninas que sofrem abuso. Que dê a oportunidade de essa criança não se calar diante de mais nenhum abuso. Que respeite o direito constitucional da dignidade, da autonomia e de viver uma vida livre de violência.
Apelo, também, aos pais dela, para que “olhem para ela”, com a esperança de um mundo melhor e mais justo, e não como uma pagadora de pecados que não são seus.
Que o criminoso seja punido, não a vítima. Que o Estado se responsabilize por sua omissão.
Nos deixem livres! Esse não é um pedido.