Sangue de HSH tem poder!
Até que a Corte brasileira se posicionasse, proibia-se a doação de sangue por homens gays e bissexuais e mulheres trans no país. Estas identidades foram estrategicamente agrupadas em uma sigla: HSH. “Homens que fazem sexo com homens”.
Por Lígia Ziggiotti e Rafael Kirchhoff
“Namorou metade do condomínio”. A resposta de Jair Messias Bolsonaro sobre a relação entre o filho Jair Renan com a filha de Ronnie Lessa, um dos acusados do assassinato de Marielle Franco, jamais se prestaria a enredar qualquer tentativa de defesa de Laura. É certo que para a única filha do atual Presidente da República – considerada por ele, durante as eleições, resultado de uma fraquejada – não se atiraria confete por excesso de experiências afetivas.
As prerrogativas de celebração de um macho pegador também não se estendem a homens que direcionam o desejo a outros homens, e menos ainda às mulheres trans. Ao contrário, aí recaem as suspeitas do sexo mais impuro e repulsivo, a ponto de impregnarem também preconceitos em normas de saúde, como as que o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais em julgamento encerrado dia 08 de maio de 2020.
Até que a Corte se posicionasse quanto àquele tema, proibia-se a doação de sangue por homens gays e bissexuais e mulheres trans no país. Estas identidades foram estrategicamente agrupadas em uma sigla: HSH. O significado das letrinhas estranhas às lapidadas pelos movimentos sociais? “Homens que fazem sexo com homens”. Com isso, caso os pretendentes tivessem mantido relações sexuais com homens nos doze meses anteriores à apresentação aos bancos de coleta de sangue, seriam considerados, de cara, inaptos à doação.
As normas declaradas inconstitucionais, embora supostamente pautadas em evidências científicas, não se debruçavam sobre critérios que permitissem concluir sobre a efetiva exposição a risco de contaminação de enfermidades ou infecções transmissíveis pelo sangue, como o histórico de relações sexuais desprotegidas.
Partia-se mesmo de uma pressuposição gestada em um preconceito contra homossexuais e mulheres trans. Desde a eclosão da AIDS, eram tidos como grupo de risco. Foi pela década de 80 que a AIDS chegou a ser apresentada pela comunidade médica como doença infecciosa relacionada a gays – gay related infectous desease.
Um exemplo do caráter enviesado dos critérios de seleção de doadores e que descortina os discursos que os fundamentam é da Associação Brasileira de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular, que se manifestou na ação direta de inconstitucionalidade apreciada pelo Supremo Tribunal Federal. Em sua tese contra a derrubada da restrição, afirmou que a demanda conduzia ao absurdo de se obrigar outro indivíduo que aceitasse o controverso sangue de um HSH. Seria uma espécie de “altruísmo impositivo”, nas palavras da entidade, para a qual soava apavorante a ideia de compartilhar do mesmo tecido corporal de alguém desta categoria. Nesta lógica, sacrificar a vida seria preferível a ser salvo pelo sangue de um homem que faz sexo com homem.
Ninguém se opõe a uma proposta de redução de chances de transmissão de doenças pela doação de sangue através de um rigoroso processo de seleção de doadores – os verdadeiros altruístas do enredo. Contudo, a construção de regras impregnadas de conteúdo moral contribui mais para a vulnerabilidade do sistema do que para o seu fortalecimento.
O questionário feito aos candidatos à doação ignora completamente o histórico de vulnerabilidade ao risco de contaminação pelo HIV e pressupõe que heterossexuais, pelo simples fato de assim se declararem, oferecem menor risco de transmissão pelo sangue. Não se trata apenas de um critério discriminatório, mas também de uma maior exposição ao risco de contaminação à medida em que heterossexuais não estão imunes a ela.
A política de doação de sangue representava um caso típico de LGBTIfobia institucional, ainda que menos evidente porque operada dentro de um debate minimamente científico. Há, porém, investidas estatais discriminatórias menos discretas e que não apenas negam, e, sim, pretendem destruir tudo que se apresente como intelectual.
Daí porque nunca houve tempos tão produtivos quanto o da pandemia para se desconfiar de critérios encampados do Ministério da Saúde, que, sem nos surpreender, saiu em defesa da restrição mesmo após o encerramento do debate pelo Supremo Tribunal Federal. Do fascínio politicamente interessado e eticamente irresponsável em hidroxicloroquina para a cura do COVID-19 à ocultação maliciosa de dados sobre o controle da doença no país, percebe-se que o rigor científico sempre pode ceder espaço a outras narrativas.
Durante a pandemia, São Paulo constatou um decréscimo de 26% de doações para transfusões, segundo divulgado pelo Instituto Pró-Sangue do estado. Além disso, há estimativas, como a da Superinteressante de 2016, baseada em dados do IBGE, de desperdício de mais de 18 milhões de litros de sangue de HSH. Mas a morte, para o governo em curso, assusta menos do que a diversidade sexual. E o uso político da tragédia humana tem certos custos em um Estado que agoniza para seguir qualificado como Democrático de Direito.
Há um mês, em coluna anterior a esta, expusemos a trajetória de criação, ápice e decadência do Movimento Escola Sem Partido. Era 24 de abril quando o Supremo Tribunal Federal iniciou o desmantelamento de projetos adeptos a esta iniciativa. Nesta mesma data, demitiu-se o então Ministro da Justiça Sérgio Moro do governo, e Jair Messias Bolsonaro procedeu um discurso atrapalhado em que, outra vez, orgulhava-se dos excessos de experiências afetivas de Jair Renan.
Dias após, pela mesma Corte, reconheceu-se, enfim, que sangue de HSH também tem poder. Agora, em 29 de maio, a Corte Constitucional concluiu outro julgamento de mais de uma dezena de casos ali em trâmite relacionados ao Movimento Escola Sem Partido. Os Ministros riscaram, sem sequer uma divergência, do ordenamento jurídico outra legislação que impedia o debate de gênero em escolas.
Como bem ouvido recentemente, o contexto contemporâneo se toma como produtivo pela trupe presidencial para passar boiada pelo Legislativo e pelo Executivo. À instância mais prestigiada do Judiciário só resta laçar parte do gado.
Lígia Ziggiotti é doutora em Direitos Humanos e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH (@anajudh_lgbti).
Rafael Kirchhoff é advogado, militante de direitos humanos e presidente da ANAJUDH (@anajudh_lgbti).
Ilustrações produzidas por Ramon Artur Freire e Elisa Rissato, do Projeto Estranhos (@_estranhos).
O encontro entre as autoras do texto e da ilustração foi propiciado pelo projeto Nave Coletiva, da Mídia Ninja.