O catalisador do lado obscuro da sociedade
O Brasil está pagando um preço histórico enorme pela continuada exploração dos elementos mais obscuros de nossa cultura e de nossa história, uma sobreposição de circunstâncias que, talvez, nos ajudem a entender o apoio resiliente que Bolsonaro ainda mantém junto a um terço da população.
O Brasil está pagando um preço histórico enorme pela continuada exploração dos elementos mais obscuros de nossa cultura e de nossa história. Não estou falando especificamente da ignorância, da carência ou da loucura, mas de uma sobreposição entre essas e outras circunstâncias que, talvez, nos ajudem a entender o apoio resiliente que o anômalo Jair Bolsonaro ainda mantém junto a um terço da população.
É o que nos informa o DataFolha, após todas as barbaridades desumanas e cagadas políticas recentes do presidente: 33% dos brasileiros mantém o apoio ao seu desgoverno. Não chega a ser um número confortável para ele, porque a sua desaprovação cresceu: 38% o consideram ruim ou péssimo e 26%, regular. Em dezembro, eram 30%, 36% e 32%, respectivamente (ainda na margem de erro, nos dois primeiros casos). O quadro é de crescente polarização, mas os números sambam.
O apoio à eventual renúncia de Bolsonaro cresceu de 37% para 46% durante o mês de abril, enquanto os que a ela se opõem caíram de 59% para 50%. Não é boa notícia para o governo, pois indica que até uma situação política limítrofe, como a de renúncia ou impeachment, em geral indesejada por todos, pode vir a ser desejada pela maioria da população. Outro dado nos mostra que, a despeito de só 20%, contra 52%, acreditarem na versão do presidente sobre a demissão do ministro Sérgio Moro, o apoio ao governo oscilou para cima. Pode ser que muita gente considere que a mentira presidencial não é tão grave, ou que confiem ainda menos no vice-presidente Hamilton Mourão, ou que avaliem o governo melhor do que o Bolsonaro.
Ao mesmo tempo em que agrupa uma forte e crescente oposição, sua imagem mantém um certo efeito teflon, similar ao que o ex-presidente Lula desfrutou e ainda desfruta. Matheus Pichonelli analisa, no Yahoo Notícias, que Bolsonaro terá por muito tempo o apoio de cerca de 30% da população, “Nomeie quem nomear para postos-chave, faça o que fizer, chute quem chutar, afaste quem afastar de seu campo, sejam esses alvos o ex-braço direito da campanha, o presidente da legenda que o acolheu, a deputada da sua antiga tropa de choque, o general que caiu atirando ou ministros de alta popularidade como Luiz Henrique Mandetta e Sérgio Moro. O governo pode desandar, mas o bolsonarismo sobrevive sem eles. Sobrevive, inclusive, se amanhã houver outro presidente”, afirmou Pichonelli.
Uma questão é livrar o Brasil, o quanto antes, desde que de forma legal, desse presidente e desse governo degradantes. Outra, que tem a ver com essa, mas vai além é encarar a questão desses 30%, empurrados para o obscurantismo pela miséria, ignorância, desesperança.
Levemos em conta que três entre cada dez brasileiros são considerados analfabetos funcionais e têm limitação para ler, interpretar textos e fazer operações matemáticas em situações da vida cotidiana. E também que o Brasil atingiu nível recorde de pessoas vivendo em situação de miséria – 13,5 milhões de pessoas ou 6,5% da população – com renda mensal inferior a R$ 145. O Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas calcula que a taxa de desemprego pode pular dos atuais 11,6% para 16,1%, neste trimestre, por causa da crise decorrente da epidemia.
Tudo isso fala muito do caldeirão social brasileiro, onde ainda cabe muita pimenta: o aumento da violência armada, das doenças crônicas, do pentecostalismo rentista, da intolerância com os diferentes. Mas esses ainda são considerações gerais, que ajudam a formar o substrato do bolsonarismo, mas que também podem estar em outras partes. Há uma linha de corte política a dar-lhe forma e especificidade: o vazio deixado pela erosão das utopias e pela fragmentação e decadência dos projetos políticos gestados após a democratização do país.
Então, vamos lá: a esta altura, com investigações em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), perspectiva de CPI no Congresso e pedidos de impeachment multiplicando-se, a questão Bolsonaro parece estar bem mais palpável. Mas também está cada vez mais evidente que há outra demanda concomitante, mas não concorrente, para chacoalharmos o país numa campanha, ou movimento, ou turbilhão cultural que promova, por meio da emoção, do encanto e da beleza, a nossa diversidade nacional, que ensine o sentido agregador e universal dos nossos que são diferentes.