Dez dias que abalam o Brasil
Um resumo sobre os 10 dias que intensificaram a crise do governo federal sob a conduta torpe de Jair Bolsonaro
“O diabo na rua, no meio do redemoinho” (Guimarães Rosa)
Brasília, 19 de abril, Jair Bolsonaro aproveita o domingo em Brasília para fazer discurso durante um ato convocado pelos seus apoiadores em frente ao Quartel-General do Exército. Mais uma vez, a presença do Presidente em manifestações contrariou as medidas necessárias ao combate da pandemia e configurou flagrante desrespeito às orientações de isolamento social, só que desta vez, com o agravante de afronta à Constituição Federal, pela explícita defesa de intervenção militar no país, tendo como principal objetivo interromper os poderes constituídos da Nação.
Na sexta-feira, 17, último dia de trabalho oficial da semana na Esplanada, Bolsonaro havia demitido Henrique Mandetta, irritado com o protagonismo do seu ex-ministro da saúde, que insistia em manter o isolamento social como forma de combater o covid-19, contrariando a vontade do Presidente. A destituição do Ministro em meio à pandemia causou estragos no governo e acentuou ainda mais a imagem autoritária de Bolsonaro.
O ato, a escolha do local e a presença do mandatário do país – que aceitou o convite para discursar na manifestação sabendo do que se tratava -, teve como propósito pedir fechamento das instituições democráticas, como o Congresso Nacional e o STF, exortando os militares a um novo golpe e à imposição da ditadura militar no País, nos moldes do AI 5, como já havia apregoado publicamente um dos filhos do Presidente, que exerce aliás, mandato como Deputado Federal.
Repetia-se, portanto, o expediente já ocorrido em final de semana anterior, quando Bolsonaro confraternizou e fez selfies com manifestantes aglomerados, e em risco de contaminação, na Praça dos Três Poderes. Além de combater o “perigo do comunismo no Brasil” – como afirmou recentemente o Ministro das Relações Exteriores -, os aliados do Presidente justificam a ditadura como uma forma de garantir o fim do isolamento social e permitir o retorno ao trabalho, independentemente dos riscos de contaminação dos trabalhadores e da população em geral.
Bolsonaro tentou uma manobra arriscada, mas a emenda saiu pior do que o soneto e a reação à sua conduta e dos seus aliados veio rápida e de todos os lados ainda no domingo, da Ordem dos Advogados do Brasil à Procuradoria Geral da República, dos partidos políticos ao STF e, segunda-feira, do próprio Ministério da Defesa, que emitiu nota afirmando: “As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do País, sempre obediente à Constituição Federal”.
No dia seguinte, terça-feira, 22, o Presidente foi ao cercadinho da imprensa, à porta do Palácio da Alvorada – onde costuma defenestrar jornalistas e os seus órgãos, para delírio dos seus costumeiros apoiadores -, e afirmou ser ele, Bolsonaro, a própria Constituição. No mesmo tom, na primeira coletiva à imprensa, o novo Ministro da Saúde, Nelson Teich, anuncia que vai descartar a testagem em massa porque, segundo ele, o “importante é saber interpretar dados”.
Um estudo apresentado pela Fiocruz, na quarta-feira, indicou o aumento significativo de internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), face à média nacional dos últimos dez anos. Especialistas e autoridades de saúde nos vários estados e municípios apontam possível subnotificação dos casos de covid-19, devido à diminuição abrupta dos números apresentados pelo Ministério da Saúde, quando a pandemia apresentava tendência de crescimento constante nas semanas anteriores. Com a repercussão na imprensa os números voltaram a aparecer em alta na quinta-feira, com 407 óbitos a mais que no dia anterior, a maior marca em 24 horas desde a primeira morte por covid-19 no país.
Neste mesmo dia, à tarde, Bolsonaro anuncia ao Ministro da Justiça, Sérgio Moro, a intenção de substituir Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal. Valeixo foi levado ao órgão por Moro ao assumir o Ministério, e o considerava como um dos principais elementos da sua equipe. Inconformado, o “super Ministro” chegou a pedir demissão, mas foi “convencido” a se reunir com o Presidente, à noite no Palácio, de forma a equacionar a situação. Moro saiu desta reunião anunciando a permanência no cargo.
Horas depois, durante a madrugada da sexta-feira, o Diário Oficial da União publica a exoneração de Valeixo, com a assinatura eletrônica de Moro e Bolsonaro. Na mesma manhã Sérgio Moro convoca a imprensa e pede demissão do cargo, anunciando que soube da exoneração do seu subordinado pelo Diário Oficial. Informou que o termo “a pedido”, assinalado na publicação, não foi solicitada por Valeixo e que, ele próprio, não teria autorizado a sua assinatura no decreto. No final da tarde a exoneração foi reeditada com a assinatura do Presidente e dos Ministros Braga Netto da Casa Civil e Jorge Oliveira da Secretaria-Geral da Presidência.
No ato do seu pedido de demissão Sérgio Moro desfilou uma série de acusações envolvendo diretamente o Presidente Bolsonaro: revelou que recebeu reiteradas cobranças relativas à condução da Polícia Federal, por Valeixo, caracterizando interferências indevidas do Presidente na independência do órgão, tais como: violar um acordo de carta branca acertado entre eles, porque não haveria uma causa para a mudança, que segundo o entendimento dele, configuraria uma clara interferência política na PF.
Afirmou que Bolsonaro estava preocupado com inquéritos em curso no STF, e que a troca na PF seria oportuna também por esse motivo – sugerindo que o Presidente teria interesse em barrar o andamento desses processos. Reiterou que o Presidente havia dito a ele, mais de uma vez, expressamente: “que queria ter uma pessoa do contato pessoal dele, que pudesse ligar e colher informações e relatórios de inteligência sobre as operações” em curso no órgão, mas que ele, Moro, entendia que não era “papel da PF prestar este tipo de informação. Que as investigações têm de ser preservadas”.
Moro também se apressou em anunciar de antemão o teor da sua conversa com o Presidente eleito, ainda em novembro de 2018, quando foi convidado a assumir o Ministério Justiça: “O nosso compromisso foi com o combate à corrupção, o crime organizado e a criminalidade violenta”, e fez questão de aproveitar oportunidade para esclarecer: “Abro um parêntese para desmistificar um dado que foi divulgado equivocadamente por algumas pessoas, que eu teria estabelecido como condição para assumir o Ministério da Justiça, uma nomeação no STF. Nunca houve essa condição, até porque seria algo de aceitar o cargo pensando em outro, e isso não é da minha natureza”, justificou.
Moro revelou também, que ele teria feito apenas um pedido ao Presidente e que não fazia mais sentido guardar esse segredo no momento que deixava o Ministério: “Durante 22 anos eu trabalhei como juiz e contribuí para a previdência, e perdi quando saí da magistratura. Eu pedi que se algo me acontecesse, que minha família não ficasse desamparada sem uma pensão. Foi a única condição que coloquei para assumir essa posição específica no Ministério da Justiça” – sugerindo que o cargo poderia colocá-lo em risco de vida. Moro frisou ainda: “O general Heleno é testemunha e pode confirmar o pedido”.
Na sua conta no twitter, o ex-juiz federal e atual governador do Maranhão, Flávio Dino, comentou sobre o assunto: “Moro, infelizmente, confessa mais uma ilegalidade: pediu pensão ou algo similar pra aceitar um cargo em comissão. Algo nunca antes visto na história. E tal condição foi aceita? Não posso deixar de registrar o espanto”. Com efeito, segundo prevê o artigo 317 da Constituição constitui crime – solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem. A pena para esse crime, reclusão de 2 a 12 anos, e multa.
Habituado a pautar a grande imprensa, especialmente a Rede Globo, com a liberação de informações privilegiadas durante a operação Lava Jato – um tanto por vaidade outro tanto por necessidade de formar a opinião pública segundo os seus interesses -, o agora ex-ministro aproveitou a oportunidade da entrevista coletiva para destacar e valorizar as suas ações frente àquela operação e fez questão também de identificar os governos do PT como corruptos e o ex-presidente Lula da Silva como um político condenado e preso por corrupção.
Como referência à propalada vaidade do ex-juiz, fica a já histórica frase do Ministro do STF, Teori Zavascki, responsável à época por revisar as decisões na primeira instância, jurisdição hierárquica a qual pertencia Sérgio Moro, enquanto juiz responsável pela Lava Jato: “O princípio da imparcialidade pressupõe uma série de outros pré-requisitos. Supõe, por exemplo, que (o juiz) seja discreto, que tenha prudência, que não se deixe contaminar pelos holofotes e se manifeste no processo depois de ouvir as duas partes”. Zavascki morreu logo depois em acidente aéreo.
No final da sua fala na coletiva de imprensa Sérgio Moro procurou pavimentar as suas pretensões para cargos futuros na política: “Vou procurar mais adiante um emprego, não enriqueci no serviço público, nem como magistrado nem como ministro, e quero dizer que independentemente de onde eu esteja, estarei sempre à disposição do País”, concluiu.
Imediatamente depois de ouvir a exposição de motivos do seu ex-ministro, Bolsonaro declarou que faria um pronunciamento à nação: “Às 17h00 desta sexta-feira 24, restabelecerei a verdade sobre a demissão, a pedido, do Sr. Valeixo, bem como do Sr. Sérgio Moro”. Na hora marcada Bolsonaro perfilou seus Ministros de Estado e começou a sua fala afirmando: “Eu sabia que não seria fácil, uma coisa é você admirar uma pessoa, a outra é você conviver com ela, trabalhar com ela. Hoje, pela manhã, por coincidência, tomando café com alguns parlamentares eu lhes disse: hoje vocês conhecerão aquela pessoa que tem compromisso consigo próprio, com o seu ego, e não com o Brasil”.
Bolsonaro falou durante 45 minutos, preocupado sempre em rebater parte das acusações apresentadas contra ele pelo seu ex-ministro e negou que teria pedido informações sigilosas e tivesse intenção de interferir politicamente na Polícia Federal, para proteger a sua família. O Presidente também acusou Sergio Moro de chantagem, afirmando que o ex-ministro teria pedido indicação ao Superior Tribunal Federal em troca da saída de Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal.
Por outro lado, a imprensa cobrou de Sergio Moro que apresentasse provas das acusações que fez ao Presidente. O ex-ministro mostrou mensagens trocadas entre eles há poucos dias, pelo celular, com o link de uma reportagem enviada pelo Presidente, sobre uma possível investigação da Polícia Federal contra vários deputados aliados. No mesmo bloco de mensagens aparece a frase atribuída ao Presidente: “Mais um motivo para a troca”. Como resposta, Moro informa a Bolsonaro que a investigação não partira do diretor-geral Maurício Valeixo, mas do Ministro do STF, Alexandre Morais.
Noutra prova apresentada, Moro tenta desmentir Bolsonaro que o acusou de ter aceitado a troca do diretor-geral da Polícia Federal, desde que ele, Moro, fosse indicado para o STF, pelo Presidente. Apresentou, também, uma série de mensagens trocadas pelo celular entre ele e a Deputada Carla Zambelli, aliada de Bolsonaro, onde ela escreve: “Por favor, Ministro, aceite o Ramagem”, e propõe em seguida: “E vá em setembro pro STF, eu me comprometo a ajudar e a fazer JB prometer”. Moro teria respondido: “Prezada, não estou à venda”. A título de esclarecimento, Alexandre Ramagem é diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) e o nome de preferência do Presidente para ocupar a Direção-geral da Polícia Federal.
Em seguida o Deputado Federal Eduardo Bolsonaro, filho do Presidente, postou dois vídeos com entrevistas do ex-ministro Moro afirmando que não houve qualquer tentativa de interferência do governo do Presidente Bolsonaro na Polícia Federal. São entrevistas que o ex-ministro concedeu já em 2020: a primeira em janeiro, no Programa Roda Viva da TV Cultura de São Paulo, e a segunda em março, para a Globo News. Em rigor, as denúncias apresentadas na sexta-feira, pelo ex-ministro contra o Presidente, dão margem a duas interpretações, do ponto de vista legal, que podem recair contra ele: a calúnia por um lado e a prevaricação por outro.
Moro em seguida postou na sua conta no twitter: “Tenho visto uma campanha de Fake News nas redes sociais e em grupos de Whatsapp para me desqualificar. Não me preocupo; já passei por isso, durante e depois da Lava Jato. Verdade acima de tudo. Fazer a coisa certa acima de todos”, numa referência às práticas de determinados grupos que ocupam as redes com Fake News para caluniar e intimidar adversários políticos – práticas, aliás, que Moro conhece bem. Segundo matéria do Jornal Folha de São Paulo, o vereador Carlos Bolsonaro, filho do Presidente, seria alvo de uma investigação conduzida pelo STF, depois de ser identificado como responsável por um desses esquemas de Fake News.
O juiz de primeira instância que se tornou estrela da operação Lava Jato e depois do governo Bolsonaro, ao qual se juntou como Ministro da Justiça, emprestando-lhe o prestígio amealhado, por meio do êxito do processo de acusação e prisão do candidato melhor avaliado para vencer as eleições de 2018, Lula da Silva – cuja peça de condenação não apresentou nenhuma prova material -, deixa agora o cargo em meio à crise política mais aguda do Estado brasileiro, esfacelado como afirma o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, por um “um homem transtornado mentalmente”, ancilar aos “interesses econômicos das elites brasileiras” que se ocupam em destruir toda a “lógica da proteção do trabalho, toda a lógica das políticas sociais”.
Agora, o herói ungido pela grande mídia do País, perde o foro privilegiado do cargo que ocupava no governo e terá que enfrentar o processo movido pela defesa de Lula da Silva, que acusa o ex-juiz da Lava Jato de atuar de forma parcial contra o ex-presidente. Moro será julgado pela Corte Suprema por ele ambicionada, mas inalcançável do ponto de vista da carreira, estagnada na primeira instância de uma cidade média do país, depois de 22 anos de serviço na magistratura, maculada pelos seus procedimentos questionáveis.
O ex-juiz ávido por projeção, agora estará do outro lado, respondendo como réu de um processo que apresentará contra ele milhares de mensagens comprometedoras obtidas pelo site The Intercept Brasil, que se viu obrigado a enfrentar grupos políticos e econômicos poderosos, postados intransigentemente em defesa da imagem que ajudaram a construir para o juíz de Curitiba. Coordenado pelo consagrado jornalista americano residente no Brasil, Glenn Geenwald, o Intercept mobilizou um extraordinário esforço de jornalismo digital independente e montou uma força tarefa para periciar e distribuir esse material para publicação em outros órgãos, inclusive da imprensa corporativa, como a Folha de São Paulo e a Revista Veja.
A estratégia montada pelo experiente jornalista e sua jovem equipe de repórteres deu conta de revelar a estreita relação entre o então juiz Moro, responsável pela condução do processo contra o ex-presidente Lula e os Procuradores de acusação da Lava Jato, numa clara ofensa ao Código de Ética da Magistratura, que no seu Art. 8º, por princípio, define o “magistrado imparcial como aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito”.
Sérgio Moro e os Procuradores da Lava Jato, envolvidos nos escândalo Vaza Jato, tentaram a todo custo desqualificar as provas obtidas pelo Intercept, defendendo que as mesmas seriam ilegais, visto que foram capturadas por hackers, a partir da invasão dos celulares dos envolvidos. Curiosamente, Moro apresentou prints das mensagens que ele trocou com a Deputada Zambelli, para se defender da acusação do seu ex-chefe, já descrita acima. A parcialidade do ex-juiz é posta em causa mais uma vez, visto que servem à sua defesa as mensagens por ele apresentadas, mas não valem as mensagens de acusação também apresentadas contra ele, pelo Intercept Brasil.
Em meio à pandemia que atormenta o mundo, o governo de Bolsonaro perdeu definitivamente o rumo, mergulhado em uma crise originalmente ética, visto que o projeto de poder que catapultou o ex-capitão ao cargo máximo da Nação, é fruto de um golpe tramado ao abrigo da mentira. Sérgio Moro é peça importante dessa trama e esteve até agora à sombra da inverdade que se estabeleceu como conduta de ilusionistas que fingem governar o que não “tem governo nem nunca terá”. Moro, sentenciou o jornalista Kennedy Alencar: “É a figura mais perigosa para a democracia brasileira”.
Distraído, o povo brasileiro descobrirá cedo ou tarde, que no desfecho da união entre Sérgio Moro e Jair Bolsonaro – consumado em divórcio litigioso -, se o “conje” foi o último a saber.