É preciso evitar que o auxílio emergencial vire uma emergência adicional
A chegada do vírus na Cabeça do Cachorro pode ser só uma questão de dias. No Norte do país, o Amazonas tem o maior número de casos de Covid-19 e o sistema hospitalar está na iminência de chegar ao seu limite de atendimento.
São Gabriel da Cachoeira fica no noroeste do Amazonas e é a última cidade antes da tríplice fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. Com mais de 109 mil km2 de extensão, é o terceiro maior município do Brasil e abrange a região chamada “Cabeça do Cachorro”, por causa do desenho da linha da fronteira colombiana, no formato do crânio de um cão. A cidade fica às margens do Rio Negro, a 8 mil km de distância do Atlântico por via fluvial e com uma altitude de apenas 121 metros em relação ao nível do mar. Apesar disso, o município abriga o Pico da Neblina, ponto mais alto do Brasil, com 3 mil metros de altitude, na parte oeste do território dos índios Yanomami.
O que mais impressiona em São Gabriel são as suas gentes. O IBGE estima em 45 mil os habitantes, metade vivendo em áreas urbanas da sede municipal e em distritos como Iauaretê, Cucuí e Pari-Cachoeira, e os demais em cerca de 750 comunidades e sítios espalhados pelos afluentes e formadores do Rio Negro. São 23 etnias, que falam diversos idiomas dos troncos linguísticos Aruak, Naduhup e Tukano. Além do português, o Tukano, o Baniwa, o Yanomami e o Nheengatu – uma espécie de esperanto indígena inventado pelos jesuítas – são línguas oficiais do município.
Nas datas em que a Caixa Econômica Federal (CEF) libera o pagamento do Bolsa Família e de outros benefícios do INSS, como o salário-maternidade, milhares de índios descem dos altos cursos dos rios rumo à cidade. Forma-se uma fila quilométrica, na única casa lotérica existente, onde se faz a distribuição de senhas, por ordem de chegada, para se fazer o pagamento em seguida. Conforme vão recebendo, as pessoas aproveitam a presença na cidade para comprar bens de consumo de que necessitam, como remédios, produtos de higiene e alimentação, além de combustível.
O impacto dos programas sociais sobre a organização social dos índios é imenso e não é novidade. O pagamento centralizado na sede do município obriga o deslocamento dos índios, quando não os induz à urbanização. Também favorece a apropriação ilegal dos cartões para recebimento por terceiros, como comerciantes locais, que ficam com parte dos benefícios, reinventando e atualizando a velha prática do aviamento, vista na época dos patrões da borracha e da piaçava no Rio Negro.
Só que, agora, com a epidemia do coronavírus, a situação problemática pode se tornar catastrófica. É óbvia e justa a inclusão dos índios entre os beneficiários do auxílio emergencial de R$ 600 que o Congresso aprovou e será liberado nos próximos dias, mas é preciso criar condições para evitar deslocamentos massivos e concentração de pessoas. A maior preocupação das lideranças indígenas e de indigenistas é com os povos de recente contato, como os Hupd’äh, Yuhupdeh e Yanomami.
O caso de São Gabriel da Cachoeira é emblemático por se tratar de um município com 90% da população indígena e situado numa região de fronteira, mas a questão vale para todas as populações vulneráveis que vivem em regiões remotas e mesmo em outros lugares do país. Os problemas logísticos de cada lugar são bem diferentes, mas em todos há o risco do benefício expor ao vírus essas populações, até agora melhor protegidas pelo isolamento.
Opera em São Gabriel um comitê de crise, que reúne as principais instituições públicas e sociais da cidade e tem orientado à população indígena a permanecer nas aldeias e apresentado propostas ao governo federal e à Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas para construir uma abordagem local apropriada para as iniciativas emergenciais oficiais. O Exército e a CEF são instituições fundamentais para viabilizar o acesso seguro e organizado dos índios aos benefícios e aos bens de consumo mais urgentes, de forma descentralizada e escalonada, se possível.
O tempo é curto. Em 16/04, a CEF estará fazendo o próximo pagamento do Bolsa Família e do auxílio emergencial. No âmbito do comitê de crise, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN) encaminhou à Fundação Nacional do Índio (Funai) e ao Ministério da Cidadania um pedido para que o período dos saques seja prorrogado. A estimativa é que pelo menos 500 famílias de indígenas cheguem a São Gabriel neste mês, sendo que o total de famílias indígenas beneficiárias é de 5.401. Até o momento, os esforços que vêm sendo feitos para manter São Gabriel em isolamento, como a interrupção das viagens fluviais, a suspensão das aulas e o fechamento do comércio, têm surtido efeito para conter a proliferação do novo coronavírus na região. Até o dia de hoje (09/04), São Gabriel tem 4 casos suspeitos descartados e 215 pessoas sendo monitoradas.
Porém, a chegada do vírus na Cabeça do Cachorro pode ser só uma questão de dias. No Norte do país, o Amazonas tem o maior número de casos de Covid-19 e o sistema hospitalar está na iminência de chegar ao seu limite de atendimento. Até esta quinta (9/4), o estado tinha 804 casos confirmados, 122 pacientes internados e 30 óbitos provocados pela Covid-19, segundo boletim do governo amazonense. O Amazonas registra o maior coeficiente de incidência de casos da doença no país, com a confirmação de 19,1 casos a cada 100 mil habitantes. A taxa é mais que o dobro da nacional, de 7,5 casos a cada 100 mil habitantes.
O risco iminente da pandemia provocar um impacto devastador sobre os povos indígenas da região é para lá de preocupante. A crise de saúde, no entanto, aproximou as instituições locais que integram o comitê de crise de São Gabriel, como há muito não se via – prefeitura, Funai, Distrito Sanitário Indígena, Exército, Diocese, Foirn, Instituto Socioambiental (ISA), entre outras. Antecipando-se à crise, o comitê espera reduzir o seu impacto sobre a cidade e os índios, mas a experiência de cooperação construída promete deixar um saldo político positivo para enfrentar outros problemas locais.
A expansão da epidemia ameaça muitas outras regiões do Brasil com populações vulneráveis. As autoridades sanitárias e os governos devem estimular alianças entre organizações locais e se abrir para soluções criativas e apropriadas a cada contexto diferente. Devem, acima de tudo, garantir que o auxílio emergencial e outras ações sociais, tão importantes nesse momento crítico, não provoquem uma onda de contágios e de vítimas, frustrando o seu objetivo.