Outra política é possível. É o que me trouxe até a Assembleia Legislativa de Minas Gerais, e é também o que me move nessa jornada. Vivemos hoje uma pandemia de escala global, que testa os limites éticos e políticos da ideologia neoliberal (que enriquece os bancos) e neofascista (que se alimenta de morte), e é nesse momento, de grande provação para todos nós, que temos a oportunidade de transplantar para a política institucional as estratégias de sobrevivência que trouxeram sujeitos tão diversos para espaços de visibilidade e poder.

Falar de outra política possível é também falar da minha trajetória de sobrevivência em um país machista, racista e elitista. Meus 41 anos de vida carregam uma memória ancestral de lutas: por educação, por moradia digna, por alimentação, por liberdade religiosa e pelo direito de existir, de amar, de viver e de ser livre. Para chegar até aqui, precisei conquistar um trabalho remunerado fixo que permitiu planejar e sonhar com um curso superior mesmo com um filho pequeno, precisei lutar para permanecer na faculdade e concluir o curso de direito, precisei me engajar na luta por direito à moradia digna, que me ensinou o valor da reforma agrária feita na prática por uma massa de lutadoras que também lutam por liberdade. É desse conjunto de lutas e vivências, experimentadas na periferia de Belo Horizonte e também em Ribeirão das Neves, que nasce, também, a necessidade de lutar contra o encarceramento em massa, que, hoje, é um dos braços mais cruéis, assassinos e limitadores do estado. A cada vez que entro no plenário e nos plenarinhos do Palácio da Inconfidência, a cada assinatura de projeto de lei, de requerimento e de ofício, todas essas lutas travadas coletivamente entram junto comigo.

É por todas essas pessoas e lugares esquecidos pela política tradicional que assumi o compromisso de ocupar uma cadeira na Assembleia Legislativa. E é por elas que defendo incansavelmente a democracia e seus instrumentos, mesmo nos cenários mais difíceis e violentos, como tem sido nesses últimos dias. É por elas que denuncio a ausência de mulheres negras e diversas na política institucional e que construo, com estratégia e afeto, pequenas brechas para possibilitar a vida dentro de um estado pensado para matar em toda oportunidade. O pânico, o descaso com o SUS, a suposta preocupação com a economia, a subnotificação de casos, e o investimento em campanhas publicitárias para convencer a massa a sair de casa em pleno pico de contágio de Coronavírus são estratégias políticas evidentes de um governo de morte para nos exterminar. E não seria a primeira vez em que essas estratégias são executadas: elas sempre existiram. Nesse sentido, vejo que minha vida é uma vida de entrega política, não só dentro da institucionalidade: educar um jovem negro e fazer dele um sobrevivente intelectual, em um país onde a maior parte dos óbitos neonatais é de crianças negras e onde jovens negros somam 70% das vítimas de homicídio, faz de mim também um ser político de entregas concretas.

Tenho sido questionada, com alguma frequência, se eu concordaria com o cancelamento das eleições municipais e com o uso do dinheiro do fundo partidário para um suposto financiamento de políticas públicas para o combate ao Coronavírus. Ter que responder a esses questionamentos enviesados dão um gosto amargo na boca, afinal a democracia participativa é uma conquista recente para nós mulheres, e para nós negros e negras, herdeiros da escravidão. No fundo, estão me perguntando se eu abriria mão do meu direito, conquistado a duras penas, de exercer a cidadania, e aí me lembro dos meus pais, analfabetos, que compravam roupas novas para ir votar, tamanho o orgulho desse gesto. O direito de escolha é nobre, dignifica e dá poder, e impedir o povo de se manifestar não deveria nunca ser uma opção. É por isso que me fortaleço e me dedico todos os dias a defender a democracia e reafirmar meu compromisso com ela; Assim como eu cheguei até aqui, é hora de outras como eu também ocuparem esse espaço que é nosso por direito para defender uma política democrática de criatividade e de resistência.

Nós negros e negras, pobres, estamos preparadas para outro salto nas relações humanas, políticas e sociais. Somos herdeiros de civilizações muito avançadas, e sabemos que o isolamento social nos reconecta com nossa espiritualidade e com o nosso território sagrado. Ficar em casa permite o nosso retorno à família, que tem sido negado pelo capitalismo ao se apropriar completamente do nosso tempo e da nossa atenção, e também permite resgatar a tradição da oralidade com nossos filhos.

Em meio à pandemia, outras formas de economia, outras trocas e formas de gerar vida plena irão se instituir. Não se assustem: vamos sair dessa quarentena com novas tecnologias de sobrevivência e de resistência tão potentes quanto as que trouxemos de África nos navios negreiros. É por isso que hoje encerro minha reflexão saudando o verdadeiro pai das ciências médicas, Imhotep, filho de Ptah, que viveu durante o Antigo Império Egípcio e morreu 2500 anos antes do nascimento de Hipócrates.

Sinto que, nesse momento, outro império de criatividade se levanta, tão avançado que não precisamos interromper nada, suspender nada, porque ele virá para criar vida a partir do barro das coisas concretas. Fiquemos em casa, cuidando dos nossos, do nosso sagrado e deixando fluir nossa potência criativa que dará início a pequenas revoluções.