A abolição não virá do STF: a criminalização da cultura periférica e o caso do Rennan da Penha
Na noite de 7 de novembro, o Supremo Tribunal Federal retomou o preceito constitucional de que ninguém poderá ter sentença condenatória cumprida antecipadamente sem que todos os recursos da defesa sejam esgotados. Em português, isso quer dizer que ninguém pode puxar cadeia antes de ser definitivamente condenado.
Por Bruno Ramos e Julia de Moraes Almeida*
Na noite de 7 de novembro, o Supremo Tribunal Federal retomou o preceito constitucional de que ninguém poderá ter sentença condenatória cumprida antecipadamente sem que todos os recursos da defesa sejam esgotados. Em português, isso quer dizer que ninguém pode puxar cadeia antes de ser definitivamente condenado. Enquanto a defesa puder argumentar pela absolvição, o réu não pode ser trancado.
Isso não é nenhum avanço. É a prova, pura e simples, de que o STF sabe ler. O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição de 1988, afirma com todas as letras: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Mas o Brasil é esse lugar curioso onde tem lei que não pega, lei que se aplica parcialmente, tratado internacional que não se cumpre. O resultado é uma política criminal violenta, disfuncional e discriminatória. Cadeia superlotada, condições carcerárias desumanas, tortura cotidiana.
Nos últimos anos, o trânsito em julgado tirou férias. Agora, por sabe o STF qual motivo, ele volta a valer e as 4.895 pessoas que segundo o Conselho Nacional de Justiça cumprem prisão provisória após condenação em 2ª instância podem responder em liberdade. É justo? Sim. É justiça? Difícil dizer.
O Estado não isola e condena as favelas por incapacidade administrativa, mas por decisão política. E, por isso, ele coloca na mira quem tenta atenuar o isolamento, a estigmatização e a falta de perspectiva.
Porque justiça é um conceito bem relativo no último país a abolir a escravidão. Esse país que tem, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, 63,6% da população carcerária composta por gente preta ou parda. Pretos e pardos cometem mais crimes? Claro que não, brancos ricos são os maiores sonegadores, os maiores traficantes, os maiores criminosos.
Mas a prisão de preto e pobre é sempre política porque a criminalização de tudo que vem da margem é uma estratégia de manutenção do status quo. A moradia do pobre é criminalizada, quando a favela é tratada por um prisma moralista, que culpabiliza o precário pela sua própria precariedade. O lazer do pobre é criminalizado, a cultura do pobre é criminalizada. O pobre é associado ao crime por ser pobre.
Rennan da Penha, afetado diretamente por esse hiato constitucional que foi a aceitação da prisão em segunda instância, é um caso emblemático de criminalização da pobreza. O DJ foi absolvido em primeira instância, condenado e preso em segunda depois de o Ministério Público recorrer da sentença original.
A sentença falava em associação ao tráfico de drogas, sob o argumento de que Rennan comunicava operações policiais por grupos de WhatsApp. Qualquer um que mora em comunidade no Rio sabe que isso não é apenas corriqueiro, mas necessário. Quando o Bope sobe, a bala come. Quando o caveirão passa, destrói moto, carro, bicicleta, o que estiver no caminho. Então, a troca de informações é simples redução de danos.
A polícia e a própria acusação sabem disso. Mas tanto faz porque o réu não é Rennan, mas a cultura de periferia. A atividade de Rennan, realizada por quem é, onde é, incomoda.
Rennan da Penha, afetado diretamente por esse hiato constitucional que foi a aceitação da prisão em segunda instância, é um caso emblemático de criminalização da pobreza.
E que atividade é essa? Renan organizava festas para sua comunidade e amigos na Vila Cruzeiro. Na prática, ele reduzia o impacto do descaso, promovendo entretenimento e independência econômica num lugar para onde o Estado vira as costas. Mas ao fazer isso, ele escancara a ausência do Estado e promove autonomia de favelado.
Só que o descaso do Estado, como mostram as sucessivas tentativas de criminalização do funk, não é passivo, é ativo. O Estado não isola e condena as favelas por incapacidade administrativa, mas por decisão política. E, por isso, ele coloca na mira quem tenta atenuar o isolamento, a estigmatização e a falta de perspectiva.
Sem nenhum tipo de financiamento estatal, Rennan conseguiu ajudar a organizar “O Baile da Gaiola” para milhares de pessoas. Suas canções fizeram a fama da festa no Brasil inteiro. O hit “Vamos pra gaiola” tocou no Lollapalooza para o deleite da playboyzada que gastou mais de R$ 200 para estar ali. “Hoje vou parar na gaiola” ganhou o troféu de “Canção do ano” no Prêmio Multishow. Ou seja, o produto de Rennan não foi proibido, mas transformado em commodity, em lucro para o asfalto. Criminalizado foi o próprio Rennan, com sua pele preta, seu CEP periférico e seu entretenimento de favela.
Como diz MV Bill, entramos pela porta dos fundos, nossa grana não. Em seu berço original na Vila Cruzeiro, o baile do Rennan é insalubre, perigoso, coisa de bandido. No Leblon e nos Jardins, tudo bem. Essa é a prova de que nosso problema não é aplicação legal, é bem mais embaixo. O STF pode se dar ao luxo de cumprir uma lei aqui, descumprir outra ali. Não passa de capricho conjuntural. Porque, no fundo, nosso aparato jurídico tem uma única cláusula pétrea: o texto não-escrito que garante que a produção do pobre sempre gere lucro pro rico, que o sentido do dinheiro sempre seja de baixo para cima, que as mercadorias periféricas circulem e as pessoas não.
Do ponto de vista jurídico, é essa infraestrutura implícita, mas infalível, que faz com que sejamos até hoje uma sociedade escravocrata. Por isso, o que precisamos não é exatamente da mudança da lei, mas de quem ela controla. Enquanto ela for monopólio de senhor de engenho, nós continuaremos escravizados.
Julia de Moraes Almeida é mestranda em criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) com coorientação na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Advogada e bacharel também pela USP com período de intercâmbio na Université Paris 1 – Panthéon-Sorbonne. Graduada pela Universidade de Lyon. É coordenadora do Núcleo Direito, Cidade e Cultura (FDUSP) e da Rede Brasileira de Saberes Descoloniais.