19 de abril: Nada a comemorar!
As Terras Indígenas são bens da União, sendo reconhecido aos povos a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, sendo dever do Estado protegê-las.
19 de abril chegou e não temos nada a comemorar! Hoje acordei e veio à memória os dias que passei esta data, na minha aldeia Ipegue em Mato Grosso do Sul. Ainda de madrugada, seguia para a casa do cacique de onde saía os guerreiros que participavam do hiokéxoti kipâe [dança da ema], expressão máxima da cultura Terena. O dia era marcado com muitas danças, músicas e churrasco. A comunidade recebia muitos visitantes, autoridades locais, como prefeitos, senadores e deputados que se juntavam aos caciques para refletir sobre a situação das comunidades indígenas. O discurso dominante, pelo menos ali, na comunidade Terena, era justamente promover a qualidade de vida dos patrícios indígenas por meio de implementação de políticas públicas, notadamente, a demarcação de terras indígenas.
Também conhecido como “dia do índio”, a data de 19 de abril foi instituída pelo presidente Getúlio Vargas, por meio do decreto-lei n. 5540, de 2 de junho de 1943. Esta data foi proposta em 1940, por líderes indígenas que participaram do Congresso Indigenista Interamericano, realizado no México. Naquela conjuntura histórica, os povos indígenas já lutavam pela garantia de seus territórios e pela superação da visão estigmatizada voltada a assimilação dos povos indígenas a dita comunhão nacional.
Se por um lado, a condição jurídica do indígena era subjugada a inferioridade, justificando assim a necessidade de “branquear” os indígenas, a outra faceta da conduta estatal revelava o entendimento de que a condição de indígena era transitória.
É com base nesse entendimento que as terras indígenas, naquele período, foram concebidas para serem espaços de transição, em grande medida, justificando a constituição de pequenas reservas, onde os indígenas receberiam toda ordem de “ação estatal civilizatória”.
Com Constituição Federal de 1988, o paradigma tutelar e de assimilação foi rompido, após séculos de imposição legal aos povos indígenas.
Sem dúvida, os povos indígenas e seus aliados, viram na constituinte de 87/88 a possibilidade concreta de emplacar dispositivos que de fato, assegurassem os direitos dos povos, mas também que, possibilitassem uma conduta decolonial no que tange o modo do Estado se relacionar com os mesmos.
É possível elencar três formas pelos quais o paradigma assimilacionista se manifestou ao longo do século XX, sendo: a) a manutenção da concepção da incapacidade indígena; b) a disponibilização das suas terras e recursos naturais às pressões econômicas; e c) a doutrina da segurança nacional.
A atual ordem constitucional completou 30 anos, e mesmo tendo estipulado um prazo para se concluir a demarcação de todas as terras indígenas no Brasil, ainda temos cerca de 767 terras indígenas pendentes de regularização. A violência aos povos indígenas é constante, e os números não ficaram no passado. Entre os anos de 2003 a 2017, foram 1.119 líderes indígenas assassinados, deste total, 41,19% são casos de Mato Grosso do Sul, estado marcado pelo intenso conflito entre indígenas e fazendeiros. Somente no ano de 2017, foram 68 vítimas de assassinato, sendo sete mulheres indígenas e duas crianças.
O Estado, por meio de sua estrutura e agentes, vem protagonizando de forma comissiva a violação aos direitos dos povos indígenas. Neste ano, com a posse do presidente Jair Bolsonaro, o seu primeiro ato foi assinar a Medida Provisória n. 870, que impactou diretamente os territórios indígenas, colocando sob as asas do agronegócio a atribuição para demarcar terra indígena; ao tempo que os ataques e invasões aos territórios se intensificaram, especialmente na região amazônica.
As Terras Indígenas são bens da União, sendo reconhecido aos povos a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, sendo dever do Estado protegê-las.
Entretanto, mesmo após demarcados, muitos territórios não ficam livres de ameaças. A TI Karipuna, em Rondônia, homologada em 1998, está com mais de 10 mil hectares de floresta destruída, em consequência da exploração ilegal de madeira e de grilagem. A TI Indígena Arara, também no Pará, foi invadida por madeireiros. Nas outras regiões do país, onde os povos aguardam pela demarcação do seu território sagrado, a situação é ainda mais grave. Na Bahia, por exemplo, 490 famílias indígenas do povo Tuxá foram surpreendidas, com uma decisão da justiça determinando a imediata desocupação do território Surubabel ou Dzorobabé, ocupado tradicionalmente pela comunidade. Em Pernambuco o povo Pankararu vive sob intensas ameaças. No centro-oeste e sul do país, os povos Guarani-Kaiowá, Terena e Kaigang são diariamente perseguidos vítimas do racismo e criminalizados.
No mundo pós-moderno, alastram-se as práticas coloniais.
O governo de Bolsonaro adota duas medidas que são velhas conhecidas do movimento indígena: a repressão e a cooptação. A repressão se instrumentaliza por meio de medidas que criminalizam as lideranças indígenas. Sob a tática da cooptação rearticula as “guerras justas”, sob argumento de defender o “progresso do índio”, traça no ambiente virtual a linha da guerrilha indígena, onde o único objetivo é dividir para imperar.
Nos próximos dias, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), irá organizar a maior mobilização indígena do país. O Acampamento Terra Livre (ATL 2019), é um claro exemplo de participação política ativa, exercício da cidadania e defesa do direito de existir dos povos. Num país marcado pelo conservadorismo autoritário e pelo racismo, aos povos indígenas resta apenas continuar a resistência qualificada exercida pelos povos originários desde o início da implantação do projeto colonial.
Não há o que comemorar!