Marcelo Yuka: a voz pela paz sem medo
Mas para a mãe e o pai de Marcelo Yuka, para a mãe, filha e a esposa de Marielle, palavras de ordem certamente não curam a dor da ausência, a história interrompida, a falta que sentem dos seus. Não nos calemos com suas mortes.
Perder Marcelo Yuka nesse janeiro de 2019 é desolador. Quem curte sua produção certamente já estava bem triste com tudo que temos vivido nos últimos tempos.
Ao chorarmos e lamentarmos a sua morte somos convidadas e convidados a (re)conhecer seu grande legado, destacando-se as lutas por igualdade, contra a violência e de denúncia das arbitrariedades do Estado.
E quanto mais nos aproximamos de sua história mais lamentamos que ele não possa continuar conosco para seguir na luta por um mundo melhor.
Marcelo Yuka foi fundador, baterista e principal compositor do grupo O Rappa. A ele devemos clássicos da música brasileira que nos inspiram e sensibilizam. Nos ajudam a ver o que, muitas vezes, está longe de ser visto, como em Minha Alma: “A minha alma tá armada e apontada para a cara do sossego. Pois paz sem voz – paz sem voz – não é paz, é medo”. Sua arte engajada trazia a denúncia da violência racial, como na música “Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro” e “A Carne”, que tem destaque na voz de Elza Soares, porque “ A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Assisti o documentário depois de sua morte. Lamentei conhecê-lo pouco, não estar com ele no PSOL em 2012, quando foi candidato a vice prefeito junto com Marcelo Freixo. Intitulado “Marcelo Yuka no Caminho das Setas”, da diretora Daniela Broitman, o documentário é resultado de 8 anos de trabalho e conta a história a partir de Yuka como pessoa pública, sensível aos problemas da humanidade, inconformado com a desigualdade social, com a injustiça, e que coloca a sua fama e a sua música a serviço da mudança.
Nessa dimensão destaca-se além a crítica social poderosa nas suas músicas, o vínculo com a luta pela terra, expressa na presença das bandeiras do MST nos shows, seu engajamento em projetos educativos nos presídios, as lutas pela acessibilidade.
Marcelo Yuka morreu no mês que o velho governo de Bolsonaro decretou a flexibilização do porte de armas. Antes disso ele já dizia que os setores médios estavam enganados, achando que poderiam se defender tendo armas. Os setores populares não poderão ter armas porque são caras e, mesmo se pudessem, isso só aumentaria a insegurança. Nós, as mulheres, sabemos bem que, com uma arma, será mais fácil sermos mortas por aqueles que são chamados, erroneamente, de nossos companheiros.
Em tempos em que a depressão se alastra como se fosse vírus, que cresce o número de suicídios até na infância, armas em casa constituem grande risco. Em tempos de intolerância e discursos de ódio, de desemprego e violência, mais armas só servem mesmo para fazer caixa para indústria bélica e favorecer político corrupto. Não atende aos interesses do povo brasileiro que precisa de educação, cultura e arte para viver e expressar sua sensibilidade. Mas se extingue o Ministério da Cultura e armas de fogo são apontadas como a solução para os problemas do país.
Sobre as armas, Yuka afirmou em entrevista ao Estadão, publicada em 17 de março de 2014:
“O cerne do meu ponto de vista é que a arma de fogo é o fim da tolerância. A guerra se dá quando a tolerância termina. E não há regras numa guerra. Isso só acontece a partir do momento em que o Estado assume que terminou o diálogo. E terminar o diálogo é uma posição política absoluta, ditatorial. O Estado não foi feito para se curvar à falta de diálogo, mas, sim, para promover sua importância. (…) Sou, talvez ingenuamente, um dos últimos que se assume como pacifista”.
O Yuka músico e lutador é mais conhecido. É extraordinário saber mais também do Marcelo pessoa física, na sua intimidade, no seu dia a dia. Um homem que sente seu corpo como limitado por conta das balas que o tornaram paraplégico. Um homem que sente muita dor nos anos que se seguem ao assalto. Uma pessoa que, segundo ele mesmo, tinha autoestima baixa e era desengonçado. Uma pessoa corajosa, que buscou ser sujeito, apesar dos dramas. Marcelo tinha um grande amor pela humanidade. Desejava também ser amado. Sua condição de cadeirante, segundo ele, confundiu mais suas emoções.
Alguém poderia amá-lo? “Me abrace e me dê um beijo, faça um filho comigo, mas não me deixe sentar na poltrona no dia de domingo procurando novas drogas de aluguel nesse vídeo coagido, é pela paz que eu não quero seguir admitindo”.
Ele não teve o filho e não se conformou à poltrona nos dias de domingo. Marcelo teve muita dificuldade em aceitar sua condição de cadeirante, o que é compreensível em uma sociedade marcada pelo capacitismo. Mas foi nessa condição de cadeirante que ele diz ter aprendido a diferença entre fazer sexo e fazer amor.
A participação de Marcelo No TEDx Sudeste também é bastante especial. Nela ele fala de como a adversidade o constituiu no pós assalto, com uma nova noção do seu corpo. E que “como artista eu percebi que o tamanho do meu corpo, tem que ser, nem que seja na porrada, o tamanho da minha sensibilidade, ela não é meu tamanho físico, nem da minha vontade mas o tamanho daquilo por que, por quem e como eu me emociono. (…) Um corpo social”. Tiraram essa vida cedo. Marcelo Yuka não vive, assim como Marielle não vive. Estão presentes em nossas lutas, nos inspiram. Mas para a mãe e o pai de Marcelo Yuka, para a mãe, filha e a esposa de Marielle, palavras de ordem certamente não curam a dor da ausência, a história interrompida, a falta que sentem dos seus. Não nos calemos com suas mortes.