Conheci Marielle Franco de forma apenas episódica, ela saindo do restaurante em que eu entrava, as duas participando ali perto das gravações do mesmo documentário um ano atrás. O encontro é marcado pelo abraço feliz de companheiras de PSOL, mas mulher mais votada das eleições para vereança no Rio, quinta colocada no total com seus quase 50 mil votos, não houve tempo para muitas palavras. As poucas que trocamos, no entanto, foram significativas da importância que essa mulher tem para mim, ela falando justo da luta para que fosse reconhecido o direito de sua assessora trans a usar o banheiro feminino na Câmara Municipal.

Mulher negra, mãe, bissexual, cria do Complexo da Maré e, como defensora dos direitos de moradores das favelas, uma opositora ferrenha da intervenção federal iniciada no Rio há pouco mais de um mês (era ela, aliás, quem estava incumbida da relatoria da comissão criada pela Câmara para fiscalizar as ações dessa intervenção), mas maior do que tudo isso, ou isso tudo junto talvez, foi a mensagem que ela deu à sociedade ao se eleger de forma tão imponente, com voto massivo das comunidades que representa, e ao mostrar que o cargo de vereadora podia, sim, ser instrumento de transformação.

Corpos negros, periféricos, trans, corpos sobretudo de mulheres, pensando política, marcando presença no cotidiano da Câmara em sua assessoria, a conexão direta com as favelas, a história que ela carrega consigo e que reafirma em cada uma de suas ações, a coragem de reinventar o possível para o cargo que ocupa, esse cargo tão engessado de vereadora (e o engessamento é interessante para quem quer manter as coisas como estão), eis a afronta cometida por Marielle, eis o que é nosso dever levar além.

Querem que sigamos acreditando que política não é nosso espaço, que gente que vem de grupos explorados, marginalizados não deve nem ocupá-la nem se preocupar com ela, e por isso o incômodo frente a figuras como Marielle, que além de invadirem um lugar tão excludente como esse ainda fazem com que essa intromissão reverbere os gritos todos abafados pelo racismo, pelo machismo, pelo classismo, pela LGBTfobia.

Marielle, não Sarney, não Temer, não Cunha, nos ensina a fazer política, a usar a política a favor das lutas que ela constrói, e pagou com a própria vida por isso. Justiça, nesse caso, é menos encontrar os culpados diretos, quem puxou o gatilho (ainda que isso seja muitíssimo necessário também), e mais replicarmos isso que ela começou, esse enraizamento nos espaços em que não nos querem, onde a atuação de figuras como Marielle abala estruturas: enraizar-se até que não seja mais possível frear na bala esse nosso avanço.