Em maio de 1933, frente à Opera de Berlim, na Alemanha, aproximadamente 40 mil pessoas aplaudiram a queima de livros de intelectuais contemporâneos como Einstein, Stephen Zweig, Jacob Wassermann e Freud ao grito de “Contra os marxistas, os judeus e os materialistas!”. Freud, particularmente, seria perseguido e acusado de pornógrafo, pedófilo e pervertido, entre outras coisas, a causa das suas teorias sobre psicanálise que, com o tempo, acabariam por ser um pilar fundamental na estrutura do pensamento ocidental moderno.

Meses após a tomada de poder, os nazistas invadiram e destruíram o Instituto de Sexologia, onde se realizavam pesquisas para dilucidar o comportamento sexual humano. Durante todo esse período, Freud tentou se afastar das proclames esquerdistas para manter em funcionamento o Berliner Psychoanalytisches Institut (BPI), porém, os nazistas deram um novo rumo e colocaram o instituto a serviço de uma psicoterapia hitleriana que teria, curiosamente, como um dos seus apoiadores mais destacados Carl Jung.

Jean Joseph Goux insinua em “Freud e a estrutura religiosa do nazismo”, que o discurso de apelo religioso messiânico de Hitler, transcendia sua psique desequilibrada e tinha propósitos estratégicos para a dominação das massas. Hitler era um maníaco que entendia o poder de uma retórica política estruturada na força da religiosidade e de um ideal do ser alemão. Isto serviu para, de forma rápida e sem espaço para o debate, iniciar uma infernal perseguição de artistas, intelectuais, homossexuais, ciganos, judeus, negros e todo aquele que não se encaixasse no ideal do que se pretendia para a nação alemã.

A atividade intelectual e artística independente foi totalmente anulada e ou controlada pelo regime. O exílio chegou para grandes nomes como Fritz Lang, Sigmund Freud, Teodor Adorno, Walter Benjamin, Annie Fischer, entre outros. Também vale relembrar que durante o período de governo de Hitler, eram proibidas as exposições de artistas como Picasso, Henri Matisse, Marx Ernst, entre outros, por ser considerados impuros ou perversos, contrários aos interesses e ao espírito puro do povo alemão.

É quase impossível, com este cenário, não realizar analogias com o que aconteceu e ainda acontece no Brasil. Os casos de Márcia Tiburi, Jean Wyllys, Débora Diniz, entre outros, são paradigmáticos e parecem obedecer à mesma sequência de perseguição e difamação que levou ao exílio aquelas grandes figuras na Alemanha nazista, há quase cem anos.

A perseguição baseada em calúnias e naquilo que hoje se conhece como “fake news” (Freud era o maior alvo de noticias falsas que alimentavam a ideia de ele ser um pervertido sexual), se praticava desde os jornais oficiais e não oficiais do partido. “Der Angriff” foi um jornal fundado por Joseph Goebbels em 1927 e tinha uma linha editorial que propagava o ódio ao “sistema”, usando linguagem agressiva e direta. Seus temas mais recorrentes foram o antissemitismo, o antiparlamentarismo, a demonização dos intelectuais, da política tradicional, da democracia e da “arte perversa e marxista”. Similar ao trabalho feito nas mídias do MBL, Direita São Paulo, ou pelo youtuber Nando Moura, a força da agressividade e a passividade do governo ante o violento discurso das suas edições acabou gerando uma sensação de legitimidade na sociedade alemã. Ajudou assim a fazer crescer a narrativa nazista como “uma visão”, uma dialética que discutia a decadência do governo dentro do agito democrático.

Márcia Tiburi começou a ser alvo de boicotes e escrachos a partir de um episódio acontecido no dia 24 de janeiro de 2018, quando abandonou um programa na rádio Guaíba ao se deparar com o militante do MBL, Kim Kataguiri. Ele foi e continua a ser participante ativo de várias ações para censurar exposições como o “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira”, ou a participação da Judith Butler no debate sobre democracia no SESC Pompeia. Marcia Tiburi escreveu sobre o episódio:

…não me é admissível participar de um programa que tenderia a se transformar em um grotesco espetáculo no qual duas linguagens que não se conectam seriam expostas em uma espécie de ringue, no qual argumentos perdem sentido diante de um já conhecido discurso pronto (fiz uma reflexão teórica sobre isso em “A Arte de escrever para idiotas”), que conta com vários divulgadores, de pós-adolescentes a conhecidos psicóticos…

Logo depois disso, Márcia sofreu de forma progressiva cada vez mais ataques e difamações por parte de diferentes setores da direita: Flávio Bolsonaro, vários youtubers do MBL, Nando Moura, entre outros, divulgaram um vídeo dela fazendo uma análise antropológica dos mecanismos (como contexto social e situação financeira) que podem levar uma pessoa a acionar um assalto. No vídeo Márcia não justifica nem faz uma apologia ao assalto, mas analisa que existem contextos que podem lançar alguém a cometer essa ação. O vídeo, viralizado no Whatsapp, no Youtube e no resto das mídias, acompanhado de uma legenda que apela a pontos sensíveis do cidadão comum – como é o problema da segurança e da violência social – contribuiu para engendrar uma sensação de insensibilidade ao respeito das figuras intelectuais do país, e particularmente um ressentimento da classe média à figura dela. A mesma estratégia empregada pelos nazistas, há quase um século.

A escritora começou a receber ameaças pelas redes, por e-mail, pelo telefone. Em abril de 2018 teve que cancelar a apresentação do seu livro “O Feminismo em Comum”, por falta de segurança em virtude das ameaças e reclamações recebidas pelos organizadores e pela própria escritora.

“Fui perseguida durante todo o ano. Todos os meus eventos e lançamentos de livros foram invadidos, ou havia promessa de invasão. Muitas ameaças… ameaças do tipo ‘Quando você estiver assinando o livro eu vou te matar’”.

Ainda conforme Márcia, “vários desses sujeitos ficavam uma hora na fila de um lançamento de um livro meu, muitas vezes até compravam o livro para poder entrar. Uma vez que entravam, de repente, pulavam entre o público e faziam uma cena. Isso começou a virar uma coisa muito perigosa, porque não era um perigo só para mim. É perigo para a cultura brasileira, é perigo para a cultura literária”.

“As pessoas querem ir num evento para escutar, ouvir um escritor… O último evento que eu participei, que foi em novembro de 2018, foi bastante significativo porque havia ameaças de morte e de invasão” … Eu fui falar de literatura, a campanha já tinha acabado, a extrema direita já tinha ganhado. Mas eles não te deixam em paz. Você não pode ser uma escritora, não pode escrever romances… foi triste ver aquela segurança armada. As pessoas, quinhentas pessoas sendo revistadas, pessoas que queriam participar de um evento literário. As ameaças aconteciam na rua, por e-mail, nos eventos, no telefone. Decidi que para minha própria segurança, mas também para a segurança das pessoas que andam comigo, que convivem comigo, ainda nesses eventos, o melhor era eu sair do Brasil”. (trechos de “No Brasil, o estímulo à matança vem de cima para baixo”, entrevista disponível no Youtube)

O Brasil padece um êxodo de intelectuais, professores e artistas, conhecidos e anônimos, empurrados pelas narrativas de ódio e pelas práticas de invasão de eventos, difamação e ameaça pelas redes ou outras vias de comunicação. Nesse êxodo, uma das mais importantes intelectuais mulheres do país teve que abandonar suas atividades aqui e reiniciar uma vida estrangeira, como acontece e aconteceu sempre sob os diferentes tipos de regimes intolerantes.

Leia na íntegra a entrevista Ninja com Marcia Tiburi:

Pensas que existe uma forma de fazer filosofia sem fazer política?

Certamente a filosofia é uma determinada política da verdade, aquela que luta por sua exposição. Ideologia é, por sua vez, a política da ocultação da verdade. É uma pena que as pessoas tenham se deixado levar mais uma vez em nosso país pela ideologia capitalista e neoliberal que oculta a sua verdade. Deveriam ter se ocupado com a crítica, ou seja, a análise e a reflexão, que seria o caminho para se chegar à verdade.

Um exemplo atualmente muito interessante para entendermos o que é a verdade na prática: verdade é o que vem à tona hoje com as matérias feitas pelos jornalistas do The Intercept. E por que falamos de verdade nesse caso? Porque se trata de olhar de frente para o que aconteceu, para as provas. Quando falamos de verdade falamos de fatos e suas provas. Não de intenções ou outras abstrações.

A mídia tradicional no Brasil faz o papel de criar ideologias, ou seja, criar acobertamentos. A mídia alternativa tem chance de trazer a verdade à tona por meio de desocultamentos. Aliás, historicamente é isso também o que a filosofia sempre fez. Mas as pessoas não parecem gostar muito da verdade. E essa é uma característica da verdade, quando ela surge em jogos de poder, ela é sempre a parte que desagrada.

Derrida desenvolveu o conceito de Falogocentrismo, em outras palavras, a ideia de que a filosofia era um circuito fechado para homens brancos de origem e pensamento eurocentrista. Hoje ainda a filosofia precisa de ser ocupada por outros corpos, outras sensibilidades que não sejam a masculina eurocentrista?

As filósofas feministas já sabiam disso há muito tempo. O termo criado por Derrida é muito feliz porque vem condensar toda uma crítica ao sujeito histórico da filosofia que ainda existe, mas está sendo ultrapassado por novos sujeitos. Essa crítica ao sujeito filosófico encarnado nesse tipo de corpo “branco, europeu” já estava no livro da Dialética do Esclarecimento de 1947. Ali os filósofos Adorno e Horkheimer já denunciavam o eurocentrismo, o machismo e o capitalismo, além da mistificação fascista que vemos retornar hoje sob moldes “tropicais”.

A questão hoje é também “geopolítica”, sobretudo depois dos críticos da colonização, e nos obriga a discutir cada vez mais a ordem do discurso, ou seja, a produção do pensamento em tempos em que o sistema econômico tenta eliminar a reflexão a qualquer curso e usa a velha indústria cultural para isso.

Quatro dos exílios mais significativos do período bolsonarista envolvem duas intelectuais e ativistas mulheres (você Marcia Tiburi e Debora Diniz), o primeiro deputado assumido defensor dos direitos da comunidade LGBTQI (Jean Wyllys), e o escritor Anderson França, ativista pelo fim da violência policial e da extrema pobreza nas periferias. A tudo isto se somam as perseguições e ameaças cada vez mais crescentes contra o jornalista Glenn Greenwald, do The Guardian e The Intercept. O que você poderia refletir sobre isto?

Existem vários intelectuais e ativistas que já deixaram o país, alguns não viraram notícia. E inclusive não sou eu que vou comentar quem são essas pessoas porque nessas situações de perseguição, ameaça de morte, retaliação, tudo o que aconteceu com a gente, e acontece também com essas pessoas, cada um sabe o que é melhor pra si. Mas existem várias pessoas que deixaram o Brasil. Essas pessoas deixaram o Brasil não porque não gostam do Brasil, ou consideram que o Brasil é um lugar pior para se viver, ou que existem outros lugares melhores pra se viver no mundo. Não são escolhas. No nosso caso não foi uma escolha.

Eu me considero ejetada do Brasil. Praticamente expulsa. Sofri uma sorte incomum de intimidações e ameaças.

No meu caso, eu me considero ejetada do Brasil. Praticamente expulsa. Sofri uma sorte incomum de intimidações e ameaças. A campanha de difamação e fake news contra mim foi algo imenso, e ao mesmo tempo eu sempre tive esperança de que poderíamos ultrapassar isso. De que tudo isso seria passageiro. De que as figuras que eram responsáveis pela criação das mentiras e das calúnias contra mim seriam vencidas em tempo.

Hoje as pessoas não sabem onde eu estou morando. Tem muita gente que pensa que eu estou morando em Paris, tem gente que pensa que eu estou morando nos Estados Unidos. As pessoas não sabem onde eu estou morando, simplesmente porque eu ainda não decidi onde vou ficar. Então, transito entre vários países. Ora morando na casa de amigos, ora recebendo convites de universidades. Só vou estabelecer um paradeiro em setembro.

No que mudou sua vida hoje, quais são as consequências psíquicas, físicas e espirituais da sua situação?

Hoje eu posso avaliar da seguinte maneira: o custo psicológico é imenso, o custo econômico é imenso, o custo afetivo em relação às famílias, é imenso. O custo profissional é imenso. Ao mesmo tempo, quem se encontra nessa situação, conta com a solidariedade de muita gente, sobretudo a solidariedade internacional. No meu caso tenho muito apoio de todos os brasileiros que estão fora do Brasil, e tenho o apoio de várias pessoas de outros países e de instituições de outros países. E é também em função disso que eu vou poder escolher onde ficar a partir de setembro.

Eu percebo o enfraquecimento do poder desse presidente abjeto no nosso país e fora do nosso país. Fora do Brasil todos já perceberam que ele é um maníaco.

Então, eu continuo escrevendo, por sorte. Eu tenho esse recurso, continuo trabalhando na minha área que envolve escrever. Mas certamente há uma destruição de uma forma de vida e de uma organização familiar. Mas não é a maior tragédia do Brasil. A maior tragédia do Brasil é o que se faz com os nossos índios, com os nossos jovens negros, com o nosso povo pobre, e com a nossa natureza. E a Europa agora se dá conta do que é Bolsonaro também em relação a ecologia.

Eu percebo também o enfraquecimento do poder desse presidente abjeto no nosso país e fora do nosso país. Fora do Brasil todos já perceberam que ele é um maníaco. Dentro do Brasil muita gente já percebeu, muita gente já sabia. Mas existem pessoas que continuam seguindo o líder autoritário. São as pessoas que compõem o cenário do fascismo brasileiro atual. E infelizmente essas pessoas também têm muita força, porque fazem muito barulho, e muitas delas tem muito poder, inclusive e principalmente poder econômico.

É claro que a classe média baixa, que acompanha, não tem poder econômico, mas atua como imitando o líder autoritário, para tentar angariar com isso um lugar ao lado dessas figuras, vendo-se junto a essas figuras e às suas performances autoritárias.

Se a história da nossa raça continua a repetir as leis que parecem tê-la regido desde seus inícios, esse período de ira conservadora vai acabar (possivelmente após uma considerável devastação econômica e humana). Como você acha que vai se sentir quando tudo isto acabar de vez? Consegues fazer esse controverso exercício de futurologia?

Essa sua pergunta é muito curiosa. Como pensar o futuro? Como pensar onde estaremos, o que faríamos depois que tudo isso passar? O que pode acontecer? Se nós pensarmos nos exemplos dos ciclos dos governos totalitários, dos estados totalitários que já causaram catástrofes humanas no mundo, talvez seja um excesso de otimismo dizer que a gente vai sobreviver a tudo isso. Então, o que pode acontecer? O que aconteceu com os alemães, depois da passagem de Hitler pela Alemanha? O que aconteceu com o povo do Camboja? Do Vietnã? O que acontece hoje com os povos diversos, que sofreram das mais diversas maneiras, seus regimes totalitários?

Eu quero manter o otimismo, considerando que nós seremos capazes de resistir coletivamente. Eu confesso a você que não estou preocupada comigo mesmo, nem um pouco. Embora seja ameaçada, pude sair do Brasil porque escrevi muitos livros e fui resgatada por uma instituição que protege escritores pelo mundo. Então eu, como escritora, e como professora de filosofia, estou protegida e realmente não estou preocupada comigo. Estou preocupada com as pessoas que não tiveram como se proteger. Seja como ativistas, seja como cidadãos comuns, que hoje estão levando em frente suas vidas, suas práticas cotidianas, estão desamparadas.

“Nós seremos capazes de resistir coletivamente”

Eu não estou desamparada, sou amparada por instituições internacionais. Me preocupo com o povo brasileiro que sofreu uma lavagem cerebral pesada, me preocupo com esse povo que não escolheu esse governo delirante, e mesmo assim, sofre os efeitos desse governo. Me preocupo com a segurança das pessoas que estão na mira de assassinos governamentais, de pessoas que por engano, por erro, por ingenuidade ou por estupidez, votaram em figuras que hoje prometem a morte das populações marginalizadas. Me preocupa que há pessoas no Brasil que ultrapassaram o limite do bom senso e da dignidade humana, desrespeitando a regra básica da nossa civilidade que é “Não Matarás”.

Espero que a gente possa superar isso. Continuamos lutando para isso. Pensando em projetos, pensando em como resgatar o Brasil. Mas precisamos fazer isto hoje com muita, mas muita inteligência, com mais habilidade e aptidão. Nós precisamos ser hoje ainda mais lúcidos para entender quais são as necessidades para concretizar a nossa reconstrução.

Agenda Marcia Tiburi:

Eu acabo de lançar “Delírio do Poder – psicopoder e loucura coletiva na era da desinformação no Brasil” pela editora Record. Em agosto lanço pela editora Nós um pequeno livro com quatro contos chamados “Quatro passos sobre o vazio”, um conjunto de quatro narrativas tendo como narrador um funcionário perverso de um sistema igualmente perverso.

Obras publicadas:

Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
Ridículo Político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. Rio de Janeiro: Record, 2017.[23]
Uma fuga perfeita é sem volta. Santa Catarina: Record, 2016.[24]
Como Conversar com Um Fascista – Reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro. São Paulo: Record, 2015.[25]
Filosofia: machismos e feminismos. Santa Catarina: Editora UFSC, 2015. (Com Maria de Lourdes Borges)[26]
Filosofia prática: Ética, vida cotidiana, vida virtual. São Paulo: Record, 2014.
Diálogo/Dança. São Paulo: Senac, 2012. (Com T. Rocha)
Era meu esse rosto. Rio de Janeiro: Record, 2012.
Olho de vidro – A televisão e o estado de exceção da imagem. Rio de Janeiro: Record, 2011.
Filosofia pop. São Paulo: Bregantini, 2011.

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