Por Cath Martins

Em ‘Ainda Estou Aqui’, a personagem Zezé, interpretada pela atriz Pri Helena, emerge como uma figura central, mas a trama, ao tocá-la de forma superficial, abre um campo fértil para reflexão sobre a memória histórica do Brasil. O filme se concentra nos dilemas da classe média diante da repressão, deixando em segundo plano as experiências da classe trabalhadora — justamente aquela que vivenciou o terror do período de maneira ainda mais crua e silenciosa.

Zezé, empregada da família de Eunice e Rubens, assume um papel de liderança quando a casa desmorona com o desaparecimento de Rubens e a prisão de Eunice. Sem qualquer apoio externo, ela usa seu próprio dinheiro para garantir a alimentação da família e se mantém firme diante das incertezas do regime. No entanto, o filme não nos conta nada sobre seu passado, sua família ou suas próprias experiências sob a ditadura, o que poderia ter sido um ponto crucial para enriquecer o enredo e trazer à tona uma perspectiva mais ampla dos impactos desse período.

Quando Eunice retorna e, sem recursos, precisa demitir Zezé, a personagem recebe um valor simbólico como agradecimento, mas é deixada para trás tanto na vida da família quanto na narrativa. Esse momento, que poderia ter sido uma oportunidade para aprofundar as relações entre as classes sociais e evidenciar o impacto da ditadura na classe trabalhadora, permanece apenas na superfície.

Pri Helena como Zezé, nos bastidores de ‘Ainda Estou Aqui’ | Foto: Divulgação

O que o filme não nos conta sobre Zezé abre um campo fértil para reflexão. O silêncio sobre sua trajetória e os desafios enfrentados durante um período de extrema violência política reforça o quanto essas histórias, muitas vezes invisíveis, continuam sendo pouco exploradas nas narrativas históricas. Sem uma lente que amplia sua presença, o filme nos deixa com a sensação de que há muito mais a ser contado, especialmente sobre aqueles que mais sofreram e resistiram ao regime militar de formas que, até hoje, permanecem pouco conhecidas.

A classe trabalhadora na ditadura

Dados históricos reforçam a importância de aprofundar essa perspectiva. De acordo com reportagem do Brasil de Fato, a ditadura implementou medidas como arrocho salarial, concentração de renda e enfraquecimento dos sindicatos, ampliando as desigualdades sociais. Para a existência do chamado milagre econômico — que beneficiou as classes médias e altas —, foi necessário sacrificar milhões de trabalhadores e trabalhadoras.

Ainda segundo a publicação, entre as décadas de 1960 e 1970, a concentração de renda favoreceu as elites, enquanto os assalariados menos qualificados tiveram sua capacidade de consumo drasticamente reduzida. O consumo que importava para o novo padrão de crescimento era o das classes médias e médias altas, enquanto os mais pobres continuavam excluídos do desenvolvimento econômico.

‘Ainda Estou Aqui’ toca em questões fundamentais, mas deixa uma lacuna onde outras narrativas, como a de Zezé, poderiam ter ganhado visibilidade. A história do Brasil não pode ser contada apenas a partir de uma única perspectiva. Para compreender os impactos da ditadura de forma mais ampla, é necessário olhar para as múltiplas vivências daqueles que mais resistiram.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.