Zélia Amador: “Sempre fui negra, em todos os espaços. Meu corpo fala, faz discursos”
Na luta contra o racismo, a ativista encontrou na arte e na universidade espaço para abrir fronteiras e assim, mudou a vida de muita gente
Na década de 1970, uma das principais expressões das artes cênicas da Amazônia, Zélia Amador ensaiava os primeiros passos rumo a um levante social, que garantiria que a luta negra fosse incorporada aos debates sobre direitos humanos. Seus esforços resultaram na evolução de ações afirmativas que ao longo dos anos vêm sendo aplicadas na Universidade Federal do Pará (UFPA). Na luta contra o racismo, segue transformando vidas.
Em 1980, a ativista protagonizou a criação do Centro de Estudos em Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), que nascia com a finalidade de combater o racismo e eliminar a discriminação racial, além de discutir cidadania da população negra. “E desde então estamos nessa luta”, reforça.
Zélia explica que no final dos anos 70, “os direitos humanos no Brasil não entendiam que a luta negra fazia parte da mesma luta. Naquele momento, os direitos humanos lutavam pelos direitos civis e políticos que haviam sido violentados e vilipendiados pela Ditadura Militar”.
Então, ela procurava um espaço de acolhida. Foi assim, que em 1978, à ocasião do lançamento do manifesto do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), no Teatro Municipal, em São Paulo, que os caminhos foram se abrindo. “Recomeçava a discussão do racismo, que é onde me inseri desde sempre, pois desde que me entendo por gente, fui vítima de racismo. Então nos organizamos e aqui no Pará criamos o Centro de Estudos e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), em 1980”.
Ao tempo em que o centro era criado, ela já havia encontrado espaço na UFPA. “Entrei para trabalhar com teatro, para dar duas disciplinas consideradas eletivas. Logo, estava engajada no departamento de artes e comunicação, que mais tarde veio a se tornar uma faculdade”. E por lá ficou. Sentiu que ali tinha um espaço para abrir fronteiras e se afirmou.
“Sempre fui negra, em todos os espaços. Meu corpo fala, meu corpo faz discursos. Minha roupa discursa. Esse corpo, mesmo que eu não queira, está elaborando discurso”.
Dessa forma, a militância se intensificou na universidade. “Hoje posso abrir a boca para dizer que a arte é uma área do campo de conhecimento dentro da UFPA e que colaborei para que isso acontecesse, sem nunca deixar de ser uma mulher negra”.
Dentro da instituição, vislumbrou que sua próxima tarefa era enegrecer a universidade. E é aí que entra a contumaz defesa pela política de cota para negros na academia, sem exigência do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “E da mesma maneira, de quilombolas, de indígenas. E aí a gente vai avançando. Hoje em dia temos políticas específicas para refugiados, imigrantes, pessoas em situação de tráfico e apátridas que podem entrar nessa instituição sem precisar do Enem”.
Tem a contribuição imensurável de Zélia nesse cenário de mudança de paradigmas. “Hoje temos essa universidade discutindo o racismo, porque os sujeitos que aqui chegaram exigiram que ela começasse a discutir o racismo. Acabei fazendo da universidade, uma fronteira de luta. Para isso, construí e construo a cada dia, parcerias. Tem muita gente disposta a combater o racismo e eliminar a discriminação racial”, se orgulha.
Foi por meio do envolvimento com a arte e a dança que Zélia foi conquistando o espaço na academia, ao ponto de promover transformações políticas e sociais. Imagine só se ela tivesse dado ouvidos para as infindáveis vezes que tentaram dissuadi-la de seus sonhos.
“Sou uma mulher negra, que nasceu e se criou numa sociedade racista. Tive a sorte de ser criada por uma avó que desde cedo me dizia que eu era preta, mas que eu não tinha que me abaixar, que ninguém era melhor que eu. Então, cresci com isso na cabeça”.
“Negra na macumba”, “negra no batuque”, “macaca”. Foram vários os apelidos que ouviu.
“E aí, quando você é criança, você brinca, você chuta, você joga pedra para se defender. E aí, vai melhorando a qualidade da sua luta”.
Se não tivesse sido estimulada a manter a cabeça erguida, talvez a Universidade Federal do Pará e tanta gente não teria sua vida transformada pela força das iniciativas de Zélia. Ela chegou em Belém, vindo da região do Marajó. Sua avó batalhou para que tivesse um destino diferente de sua mãe, que engravidou aos 14 anos e teve que trabalhar como empregada doméstica. “No bairro do Sacramento, que era muito mais periferia que hoje é, cheguei por volta de 1 ano e meio”. Por esforço da avó, conseguiu vaga em um colégio periférico.
“Então ela me trouxe e na cabeça dela, eu tinha que estudar. Essa era a missão. Me dei bem, consegui dominar as coisas na escola. Talvez tenha sido uma das minhas vantagens ser inteligente. Então, apesar de preta, era inteligente”. Com domínio da matemática passou a ajuda as professoras do colégio de freiras.
Injustiças
Foi quando tinha uns nove anos, que sentiu mais fortemente o peso do racismo. “Chega um dia alguém na sala chamando as meninas para participarem de uma dança que a freira estava chamando de macumba. Quando eu fui entender, aquele termo que ela tinha usado, a que se referia, pensei: ‘eu sou a pessoa para dançar macumba’”. E então, as crianças da sala foram convocadas. Quem queria, tinha que se levantar. “Daí levantei e a freira foi escolhendo, escolhendo. Continuei de pé e as meninas saíram para o ensaio. Perguntei à irmã porquê ela não tinha me deixado ir. Ela não queria dizer”.
Então, Zélia insistiu.
“Fiquei até que ela me disse: ‘é que para essas atividades a gente escolhe as crianças mais bonitinhas, mais ajeitadinhas’. E eu, em absoluto, não achava uma pessoa desajeitada, tampouco feia. Mas a vida segue e você vai aprendendo a viver e se defender, quando desde criança você se entende numa sociedade racista”.
O estudo fez Zélia ascender. “Sair da extrema miséria que minha família vivia, família de pessoas pretas, analfabetas”. Ela teve que conviver desde cedo com a injustiça. A começar pela situação da própria mãe.
“Naquele tempo doméstica não tinha salário. Tinha que dormir na casa dos patrões. Só saía de folga no domingo, e só depois das 16h. Então, minha mãe ia me visitar todo domingo. Mas era só até às 18h. Tinha que dormir na casa dos patrões. E então, fui uma pessoa que queria combater injustiça, desde sempre. Já nasceu comigo. É minha parte Xangô. Ela sempre falou muito alto”.
A vida seguiu, ela se engajou na teologia da libertação e logo estava fazendo teatro. “De movimento de jovens da paróquia, quando eu vi já estava na célula de um partido clandestino, uma ação popular. Mas eu sentia falta de discutir a questão racial. Sempre senti. O partido me ajudou no combate à injustiça, mas a questão racial não era tratada ali, então, fui para outros caminhos”. Até chegar à universidade e por meio da arte, provocar revoluções.
Amazônia racializada
Hoje, Zélia, da perspectiva amazônida, defende o respeito à diversidade dentro de uma região, que enfatiza, guarda muitas amazônias.
“É um bioma extenso, praticamente 60% do território brasileiro. Mas não estamos só no Brasil, ela abrange outros países, por isso somos Pan-Amazônia. Por isso, não posso homogenizá-la a partir da minha vivência, de uma mulher da Amazônia paraense, já que há mulheres da Amazônia na Guiana, no estado de Rondônia, Roraima, enfim, temos diversas amazônias”.
Ela defende que essa diversidade tem de ser considerada.
“O que nos une é o enfrentamento a um colonialismo interno que se instalou no Brasil. A Amazônia foi racializada, por isso, nós que a habitamos, somos invisibilizados. Daí o poder central se achar no direito de implantar aqui os grandes projetos sem nos ouvir. Não nos ouvem porque não consideram nossa existência como vida inteligente capaz de decidir sobre o nosso próprio destino. Deixam as grandes mazelas para administramos”.
E ela enfatiza que é hora de acabar com isso.
“O racismo mata a nós, pessoas negras, mas mata também os povos da Amazônia que dele são vítimas. Convido todos a entrar nessa luta, que tem que ser gloriosa”.